Em 1752, François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), um dos expoentes, na França, do movimento cultural chamado de Ilustração, escre¬veu que a Europa cristã havia se tornado uma espécie de grande república dividida em vários Estados, com muitas semelhanças.
Todos tinham um fundo comum de religião, abraçavam os mesmos princípios de direito público e de política e se empenhavam em manter uma balança equilibrada de poder, além de outros aspectos comuns.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), outra grande figura desse movimento, considerou não mais existirem, então, franceses, alemães, espanhóis, “nem mesmo ingleses, só há europeus”. E acrescentou: “Todos têm os mesmos gostos, as mesmas paixões, os mesmos costumes porque nenhum recebeu uma forma nacional por meio de uma instituição particular”.
Se o século 18 marcou o triunfo da Europa do ocidente sobre a parte oriental, é bom lembrar, como os historiadores britânicos John Pocock e Anthony Pagden, que a ideia de Europa nasceu no Oriente, nas regiões onde os turcos muçulmanos e os árabes viviam às turras com a cristandade.
Surgiu entre os povos de cultura grega, no período entre as guerras persas e a época de Alexandre da Macedônia. Nos mitos e nas lendas, o nome de Europa era dado às terras que ficavam a leste do estreito de Bósforo, diferenciando-as daquelas a oeste, chamadas de Ásia.
Inicialmente, a ideia se referiu ao mundo civil – helenístico, e depois helenístico-romano –, para distingui-lo do mundo bárbaro. A seguir, serviu para diferenciar cristãos e pagãos.
Parece que a palavra ‘europeu’ foi usada pela primeira vez por Enéas Silvio Piccolomini (1405-1464), humanista do Renascimento italiano feito papa com o nome de Pio II. Mas quem deu um sentido laico e político à palavra foi o também italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527): a Europa, escreveu, se distinguia das demais terras por causa de suas instituições, que eram permanentes, e não contingentes.
Sem lugar para a diferença
Com os descobrimentos, os povos da América impuseram aos europeus uma reflexão sobre diferenças culturais e, ao mesmo tempo, sobre a unidade do gênero humano. Se eram também homens aqueles seres variados, uns nus, vivendo nos matos, outros vestidos ricamente, habitando palácios, era preciso cristianizá-los e civilizá-los: em suma, urgia europeizá-los.
Pagden ponderou que, sendo uma comunidade cultural, a Europa nunca chegou a sê-lo do ponto de vista étnico e político, nem mesmo quando, como na Ilustração, se considerava hegemônica. Comunidade “diversificada e mestiça, cuja história real ignoramos”, escreveu o historiador espanhol Josep Fontana, dependendo sempre de um espelho para poder se definir e se diferenciar dos outros.
Pocock, por fim, percebeu que a unidade da Europa foi, em grande parte, fruto de dois grandes momentos, definidos em termos econômicos. Entre 1713 e 1789, no auge da Ilustração, apresentou-se como uma república de Estados, unidos pela parceria entre soberania civil e sociedade civil, imprescindível ao desenvolvimento do comércio.
Contemporaneamente, a partir da formação da Comunidade Europeia, o continente cogitou na submersão do Estado e de sua soberania “em nome de uma era pós-moderna, na qual o mercado global exige a subjugação da comunidade política e talvez, também, da comunidade étnica e cultural”. E constatou: “Estamos em vias de deixarmos de ser cidadãos e de nos comportarmos apenas como consumidores”.
Acontecimentos recentes deixam claro que o velho sonho da Europa não comporta a mistura ou a mestiçagem. E o pesadelo é esse que se vê agora, quando levas cada vez maiores de migrantes ameaçam uma ideia de Europa construída milenarmente. Populações que, não raro, vêm das regiões originalmente designadas como Europa: Grécia, Bálcãs e outras.
Em um muro de Lisboa, flagrei, com uma amiga, duas frases contraditórias. À direita, estava escrito: “Economia marxista”. À esquerda: “Morte aos ciganos”. Uma, a criticar o sonho europeu da unidade conferida pelo consumo. A outra, a reafirmar o horizonte ideal de uma Europa sem uniformidade e sem jaça.
Laura de Mello e Souza
Departamento de História, Universidade de São Paulo
Texto originalmente publicado na CH 276 (novembro/2010).