O estudo da catarata ganhou um poderoso aliado: o uso de feixes de raios X para a análise de tecidos do cristalino (lente natural do olho). A descoberta dessa nova aplicação para a radiação X deve-se a um grupo do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), que conseguiu obter uma visualização completa, com informações microscópicas do cristalino. Com o uso apenas de microscópios ópticos e eletrônicos, não se conseguia ‘enxergar’ a lente do olho inteira, que tem pouco menos de 1 cm de diâmetro. O método facilitará o estudo das características de doenças que afetam o cristalino.

Imagens de raios X de lentes inteiras com catarata, mostrando diferentes tipos da doença: (a) caracterização da superfície; (b) catarata hipermatura; (c) parcial e (d) total

Segundo o físico Sérgio Morelhão, responsável pelo projeto, desenvolvido no Departamento de Física Aplicada da USP, foram analisadas lentes de vários mamíferos com a doença, todas bastante semelhantes à lente humana. Apenas as lentes caninas foram estudadas em detalhe, até o momento, devido ao grande número de amostras. O método pode ser utilizado em qualquer tipo de tecido e mesmo em materiais inorgânicos, a fim de avaliar sua estrutura. “Como a técnica fornece uma visão global, possibilitando a observação de todas as partes do tecido conjuntamente, podemos comparar tecidos saudáveis e doentes. O primeiro desafio agora é correlacionar os diversos fatores responsáveis pela catarata com as informações inéditas obtidas das imagens de raios X. Em seguida, essa análise deverá ser levada ao laboratório clínico”, diz o físico.

Os raios X são mais conhecidos por seu emprego em exames de radiografia. Nesse caso, a radiação atravessa todos os tecidos do paciente, apresentando uma intensidade diferenciada (menor) ao atravessar os ossos, o que permite aos médicos avaliarem, por exemplo, a existência de alguma fratura. Já na análise do cristalino, exploram-se principalmente os desvios na direção de propagação dos raios X, quando eles passam pela lente do olho. Embora seja bem pequena – da ordem de centésimos de milésimos de graus –, essa mudança do ângulo é detectada a fim de mostrar as alterações do tecido acometido pela doença. A grande sensibilidade do aparelho à variação do ângulo deve-se à reflexão dos raios em um cristal perfeito.

Os experimentos foram feitos no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas (SP), e no laboratório norte-americano Fonte Nacional de Luz Síncrotron, em Nova York. Apenas nesse tipo de laboratório há a infra-estrutura necessária para as pesquisas, pois a técnica de imagem de raios X empregada só funciona para uma radiação monocromática, ou seja, todos os raios incidentes na amostra precisam ter exatamente a mesma direção de propagação e o mesmo comprimento de onda. As fontes convencionais de radiação, existentes em laboratórios hospitalares e acadêmicos, liberam feixes dispersos e de baixa intensidade se comparadas às fontes síncrotron.

Todos os testes foram realizados in vitro , ou seja, os cientistas retiraram um pedaço do tecido do animal para fazer a análise. Pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootécnica da USP extraíram para o estudo, através de cirurgia, as lentes inteiras de animais já sem visão. Morelhão afirma que, em princípio, não há risco em submeter os animais a esse tipo de radiação localizada. “Teoricamente, as células não seriam danificadas após a exposição aos raios X, mas podem ocorrer dificuldades técnicas no processo que acabem prejudicando o animal”, avalia.

Um passo para o tratamento
A catarata é causada pela perda de transparência do cristalino, o que provoca espalhamento dos raios de luz – difusão da radiação visível –, prejudicando a visão. Isso acontece porque as fissuras ou imperfeições do tecido causam o espalhamento da radiação eletromagnética visível se suas dimensões forem da mesma ordem do comprimento de onda da luz.

“Os raios X permitem identificar a localização dos centros espalhadores, a distribuição deles dentro da lente, e também nos dão uma estimativa muito melhor do seu tamanho”, esclarece Morelhão. Por isso, a técnica é particularmente eficiente na análise de lentes com catarata e poderá ampliar a compreensão da doença, passo fundamental para o desenvolvimento de tratamentos de reversão ou estabilização dos diversos quadros que ela pode apresentar. “Começamos estudando a catarata porque é uma doença comum, que nos propiciará volume de amostras suficiente quando começarmos a pesquisar os tecidos de seres humanos. Tecidos com câncer também poderiam ser estudados, mas trata-se de um material muito difícil de se conseguir”, exemplifica.

Os pesquisadores observaram que os cristalinos de cachorros com cegueira parcial e total apresentam características distintas. A cegueira parcial aparece relacionada com manchas de tecido calcificado. Já na catarata total foram observadas fissuras provocadas pelo ressecamento das fibras do cristalino, que causam um espalhamento da luz até um ponto em que não é possível mais enxergar. Morelhão afirma que um dos objetivos do estudo é investigar as causas dessas diferenças. “Desconfiamos que o primeiro quadro da doença esteja ligado ao consumo exagerado de cálcio, porque analisamos animais que consomem grande quantidade desse mineral. Quanto ao segundo, é possível que esteja relacionado ao diabetes, pois essa doença predispõe a alterações fisiológicas dos tecidos que poderiam influenciar na formação das fissuras”, afirma Morelhão.

Franciane Lovati
Ciência Hoje/RJ

 

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