Nem só de cientistas depende a ciência. Em muitos episódios de sua história, pessoas sem treinamento acadêmico formal desempenharam um importante papel na produção de resultados que contribuíram de modo significativo para mudar certos paradigmas. Os colecionadores têm um destaque especial. Tendo desenvolvido uma afinidade com certos objetos, muitas vezes são eles que fornecem a ordem necessária para o desenvolvimento de hipóteses e modelos gerais.
Esse foi o caso de Mary Anning (1799-1847), a chamada princesa da paleontologia, cujas descobertas de fósseis na região da cidade litorânea de Lyme Regis, na Inglaterra, foram fundamentais para sedimentar o pensamento evolucionista que já fermentava na época e que culminaria, um pouco mais tarde, com a obra seminal do naturalista Charles Darwin (1809-1882).
Curiosamente, sem que haja aí qualquer recomendação, consta na biografia de Mary Anning que ela foi atingida por um raio aos 15 meses de idade, o que parece ter mudado radicalmente sua personalidade. Segundo um sobrinho, Mary exibia, antes dessa epifania elétrica, uma personalidade meio apagada, e se tornou depois vivaz e inteligente.
Mais recentemente, os adeptos de jogos eletrônicos, conhecidos como gamers, ajudaram cientistas a decifrar as estruturas tridimensionais de várias proteínas. Os gamers não tinham treinamento em bioquímica, mas atenderam ao chamado dos cientistas, que transformaram em um jogo a tarefa de compreender as conformações proteicas.
O objetivo era buscar estruturas que exibissem a energia mais baixa (como ocorre na natureza), obedecendo a regras definidas pelos pesquisadores. Os jovens, com sua familiaridade habitual à linguagem eletrônica, produziram rapidamente as soluções, identificando inclusive a estrutura de uma proteína ligada à síndrome da imunodeficiência de macacos que há muito tempo desafiava os cientistas.
A associação entre segurança nacional e ciência também pode parecer insólita, mas houve um caso em que, mesmo sem intenção, militares norte-americanos fizeram descobertas importantes em astronomia, embora estas tenham permanecido ocultas por décadas.
Em 1967, operadores de um radar de vigilância no Alasca, instalado para detectar ogivas nucleares inimigas, localizaram estrelas que emitem sinais de radiopulsantes (chamadas de pulsares), bem antes de estudos realizados por civis. Esses registros, segundo artigo publicado na revista científica Nature (v. 477, p. 388), ficaram sob sigilo até 2007. Não surpreenderia que, sob a égide da segurança, exista um acervo científico incalculável ainda a ser divulgado.
Voltando aos gamers, a ideia de transformar enigmas científicos em jogos é bem interessante. Como se sabe, um dos grandes flagelos da humanidade é o câncer. Legiões de pesquisadores vêm acumulando uma quantidade impressionante de resultados ao longo de décadas, com estratégias de estudo distintas. A percepção atual é a de que a solução já exista no meio dos dados produzidos, mas não seja percebida, dada a complexidade das células. Assim, seria preciso um grande exercício mental para reunir tudo o que é conhecido em uma hipótese coerente que permita indicar a melhor estratégia para tratar essa doença.
Entre as ferramentas nascidas da bioinformática, uma que se presta a se tornar um jogo é o interactoma, que pode ser definido como um diagrama que mostra como os elementos de um conjunto interagem uns com os outros. No caso das células, os protagonistas são as biomoléculas (ácidos nucleicos, proteínas, vitaminas, lipídios e outras) e o interactoma mostra não só os pontos de contato, mas também a hierarquia das interações.
Diante de tal quadro, talvez os gamers se animassem a buscar a solução para perguntas como: qual a diferença fundamental entre uma célula normal e uma tumoral? Como eliminar as células tumorais sem perturbar as normais? Enfim, um quebra-cabeça. Novamente, os jogadores não precisariam ser bioquímicos ou oncologistas. Eles deveriam apenas ser capazes de perceber padrões, tarefa bem mais fácil para a mente humana do que para a circuitaria dos computadores.
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Texto originalmente publicado na CH 289 (janeiro/fevereiro de 2012).