O que você comeu ontem? Como foi sua última festa de aniversário? Qual é o seu número de telefone? Essas perguntas podem não parecer muito importantes – porque, provavelmente, você é capaz de respondê-las. O que parece trivial, no entanto, é um problema diário para pessoas com síndrome de Down, distúrbio genético causado pela cópia extra do cromossomo 21, que provoca, entre outras coisas, dificuldades de memória e cognição.
O médico e neurocientista brasileiro Alberto Costa, radicado nos Estados Unidos, onde pesquisa na Escola de Medicina do Colorado, sabe bem disso. Depois de 16 anos estudando a síndrome de Down – motivado pela filha, afetada por essa condição –, o pesquisador liderou o primeiro estudo em que pacientes apresentaram melhora cognitiva ao tomar um medicamento, a memantina. Normalmente usada para tratar a doença de Alzheimer, ela atua sobre o hipocampo, região cerebral ligada à memória e sabidamente comprometida em pacientes com Down.
Costa já havia feito experiências com a substância anteriormente. Em 2007, ele e sua equipe mostraram que a memantina foi capaz de reverter déficits de aprendizagem e memória em camundongos com a trissomia do cromossomo 21. No experimento atual, 38 adultos com Down foram separados em dois grupos: um recebeu placebo e o outro pílulas de memantina por 16 semanas. Ao fim desse período, os pacientes foram submetidos a testes de memória em que precisavam, entre outras tarefas, decorar longas listas de palavras.
O resultado foi positivo. As pessoas que receberam a pílula tiveram desempenho em média 30% superior ao das que tomaram o placebo. A melhoria se deu na chamada memória episódica, espécie de diário mental responsável pelas lembranças de acontecimentos recentes e autobiográficos.
“Nosso estudo foi muito curto e não esperávamos conseguir detectar um efeito significativo na capacidade dos participantes de executarem atividades rotineiras. Foi uma pequena melhora em apenas um aspecto, mas um grande avanço na área”, diz Costa.
O neurocientista aponta que os pacientes perceberam a diferença e se sentiram motivados a participar do estudo. “Alguns começaram a chamar os comprimidos de ‘pílulas cerebrais’ (brain pills) e ‘pílulas da esperteza’ (smart pills) e com frequência eram eles que lembravam a seus pais a hora de tomar a medicação. Além disso, quase todos me disseram que gostariam de participar de outro estudo no futuro.”
Costa conta que o paciente com melhor resposta ao medicamento, um homem de 25 anos, chegou a apresentar um desempenho 10 vezes superior ao conseguido em testes antes do estudo. “Esse caso foi o mais chamativo”, reforça. “Ele falava muito pouco e quase não olhava para outras pessoas diretamente nos olhos. A melhora de comportamento foi muito clara depois de oito semanas e maior ainda na 16ª semana de tratamento. Obviamente, este não foi um resultado típico, mas foi uma experiência marcante para mim e outros membros do meu grupo, porque nos mostrou o potencial desse tipo de intervenção farmacológica para a melhoria da qualidade de vida.”
Ideias para o futuro
Zan Mustacchi, médico especialista em síndrome de Down, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas Clínicas de São Paulo (Cepec), ressalta que, estatisticamente, os efeitos positivos do experimento não foram muito significativos. Mas acredita que, ainda assim, a pesquisa é um passo importante e pode prosseguir com melhores resultados. “Representa um avanço considerável já que é um medicamento em uso, que se sabe não ter nenhum efeito negativo e que já se mostrou eficaz em modelos com animais”, diz.
A ideia de Costa é que, se aprovada para o tratamento de síndrome de Down, a memantina seja usada diariamente e por toda a vida, da mesma forma que os remédios para doenças crônicas, como a hipertensão. Mas o neurocientista ressalta que ainda são necessários mais estudos clínicos e pré-clínicos para investigar se os efeitos da substância de fato continuam com o seu uso prolongado e se geram benefícios práticos no aprendizado de pessoas com a síndrome.
O pesquisador avisa que já estão levantando fundos para novos experimentos e que parte dos futuros testes clínicos pode ocorrer no Brasil, no Cepec. “Irei a São Paulo em breve para tentar negociar um acordo que possa satisfazer tanto autoridades brasileiras quanto norte-americanas, mas estamos apenas no começo do processo”, adianta. “Para que a droga seja aprovada, será preciso uma coordenação praticamente perfeita de esforços entre o grupo americano e o brasileiro.”
Ameaça iminente
As pílulas de memantina podem vir a ser uma solução ou pelo menos abrir caminho para resolver um grave problema associado à síndrome de Down. Segundo Mustacchi, cerca de 60% das pessoas com a alteração genética desenvolvem a demência do Alzheimer por volta dos 50 anos. “É um processo hoje inevitável”, aponta. “Temos observado lesões típicas da doença de Alzheimer no cérebro de pessoas com síndrome de Down ainda com 12 ou 14 anos, e essas mesmas lesões só começam a aparecer em pessoas sem a síndrome a partir dos 40 anos.”
Mustacchi e Costa apostam que o uso da memantina desde a infância poderia protelar a evolução precoce da demência do Alzheimer em pessoas com Down. “A expectativa de vida de pessoas com síndrome de Down está rapidamente se aproximando dos 60 anos de idade”, diz Costa. “A associação entre Down e Alzheimer está ficando cada vez mais visível, e não podemos descartar a expectativa de que assuma proporções epidêmicas nas próximas décadas. Pais e médicos precisam saber que a capacidade cognitiva de pessoas com Down pode melhorar com a ajuda de medicação.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 297 (outubro de 2012).