Leitor inveterado, fã de Shakespeare, mantém diálogo constante com as obras de René Descartes e William James, frequenta assiduamente concertos de música clássica e tem como interlocutor um dos mais cultuados violoncelistas do mundo, Yo-Yo Ma. Além disso, é cinéfilo e admirador profundo de Orson Welles. Sabe de cor as músicas de Tom Jobim e “poderia até cantá-las” para o repórter, se não tivesse “medo de fazer vergonha”. Não é um crítico de arte, jornalista cultural ou filósofo. Do outro lado da linha do telefone, quem fala é António Damásio, neurocientista português radicado há mais de 30 anos nos Estados Unidos.
Num português típico, mas bastante influenciado por expressões americanas, Damásio, diretor do Instituto do Cérebro e Criatividade, na Universidade do Sul da Califórnia, falou com a Ciência Hoje, entre outros assuntos, do livro que lançou há pouco no Brasil, o celebrado E o cérebro criou o homem (Companhia das Letras, 2011).
O português de 68 anos também é autor de outros três livros, entre eles o igualmente festejado O erro de Descartes (Companhia das Letras, 1996), obra que o fez despontar para um público mais amplo e na qual defende o fim do dualismo entre emoção e razão.
Em seu novo livro, Damásio investiga a consciência humana e o lugar do cérebro em que o self – o ego – se forja. Ao mesmo tempo, busca respostas para como e quando começamos a sentir o mundo por meio da subjetividade construída pelo nosso eu. Individualidade. Questão cara a cientistas, sem dúvida, mas com diálogo estreito com qualquer exercício de investigação do homem.
Como é o dia a dia do senhor no instituto?
Temos um programa com diversos investigadores. Nesta semana, fizemos trabalhos sobre a emoção e o sentimento. Estamos a tentar perceber qual é a base neuronal do processo de sentir do corpo, sentir coisas como dor ou prazer, alegria ou zanga.
Continuamos também a desenvolver trabalhos sobre a consciência, tentamos perceber qual é a base neuronal do processo de estar alerta e consciente. Consciente do seu próprio eu, consciente daquilo que nos rodeia. Além disso, fazemos experiências que têm a ver com a música, pois estamos a tentar perceber como o cérebro processa os estímulos musicais – a maneira como o cérebro se organiza não apenas para fazer música, mas também para apreciar música.
Em E o cérebro criou o homem, o senhor diz que o tronco cerebral seria a região onde o self se forma. Essa hipótese é a ideia original da obra. Como uma região que regula funções de níveis tão primários, como a respiração e o funcionamento dos órgãos, poderia ser o lugar em que aparece a nossa primeira noção de individualidade?
O tronco cerebral tem a capacidade de representar internamente aquilo que está a passar dentro do corpo e essa representação é aquilo que chamamos de sentimento, o mais simples de todos, que é o sentimento primordial. E há qualquer coisa de muito importante aí. É uma capacidade de representação que está ligada aos valores da vida desde o princípio.
Desde o início, cada um desses microssistemas, cada uma dessas células vivas, tem um valor positivo ou negativo, que faz a vida funcionar bem ou mal. Todas as nossas células podem estar num sistema de equilíbrio ou num sistema que está a caminhar para a doença e a morte. E é daí que parte todo o nosso sentimento. Nosso sentimento positivo, de bem-estar, alegria, prazer. Ou o sentimento de punição. Variamos entre a recompensa e o castigo. Tudo isso está presente nas menores células dos trilhões que temos no nosso corpo. Há sempre essa dualidade, que está organizada ao nível do tronco cerebral. E é daí que nascem pela primeira vez esses sentimentos primordiais: o sentimento de bem-estar ou o sentimento de doença e mal-estar.
Como esse sentimento primordial consegue dialogar com sentimentos mais concretos e conscientes?
Os sistemas que temos foram desenvolvidos ao longo de bilhões de anos, surgiram de modo muito lento durante a evolução, e lentamente também apareceram novos níveis de processamento, de organização. Portanto, a princípio, existia o tronco cerebral mais simples, que servia para regular o metabolismo e as respostas úteis às oportunidades e aos perigos do ambiente. Depois, a apreciação das coisas deixou de servir apenas à autorregulação e começou a servir também para interagirmos com aquilo que se passa no mundo à volta, àquilo que se ouve e se sente.
À medida que essas apreciações tornaram-se mais complexas, houve novos sistemas que se foram colocando em camadas, um em cima do outro – primeiro o tronco cerebral, depois o hipotálamo, depois o tálamo, no córtex central. Esses sistemas vão criando novas imagens sobre aquilo que é o corpo propriamente dito. A princípio, são apenas imagens do corpo em bem-estar ou mal-estar. Aos poucos, ganham-se novas imagens que têm a ver não só com o corpo, mas com aquilo que está à volta do corpo. Daí começa a haver essa noção das outras coisas – a noção do outro, daquilo que está à volta. Todos os sistemas estão ligados uns aos outros!
No instituto, há também um forte trabalho com o estudo de imagens do cérebro, certo?
Sim, minha mulher, Hanna Damásio, está a fazer várias pesquisas para conseguir desenvolver certos métodos com a ressonância magnética. Queremos perceber quais são as vias de comunicação entre as diversas zonas do cérebro e do tronco cerebral. Esse é um trabalho que está a me ocupar muito, porque é muito importante e mostrará novos caminhos de pesquisa para o futuro.
O senhor é ligado ao que acontece na pesquisa científica portuguesa?
Muito. Sou muito ligado a Portugal. Vou lá várias vezes por ano. Tenho imenso gosto das coisas que ocorrem em Portugal, faço parte de comitês de gestão da ciência por lá. O país tem belíssimos investigadores.
Tanto Brasil quanto Portugal não são tradicionalmente reconhecidos por praticar ciência de ponta. O senhor, inclusive, teve de sair no começo da carreira de seu país para pesquisar nos Estados Unidos. Como vê hoje o movimento de alguns países em desenvolvimento de resgate desses cérebros que ainda atuam no exterior?
Isso tem a ver com a falta de motivação para investir na ciência por muitos anos. Mas isso está a mudar agora. Por exemplo, cinco investigadores de Portugal ganharam recentemente verbas para pesquisa do prestigiado Instituto Howard Hughes. Portugal ficou atrás apenas da China, que teve sete investigadores selecionados. Há qualquer coisa que se passa em Portugal que é importante. Não posso ter cinco investigadores num grupo de pouco mais de 20 à toa! É evidentemente sinal de que se está a dar grandes passos.
É claro que o Brasil tem mesmo que fazer isso também e vai fazer, porque é um país muito grande, de enorme capacidade, tanto do ponto de vista econômico quanto intelectual. Portanto, basta haver esse esforço para que as universidades e os centros universitários possam ter verbas disponíveis para fazer o grande orçamento da ciência. Quando isso acontecer, as coisas vão caminhar muito bem. Até porque, se o Brasil pode fazer aviões, também pode fazer ciência [risos].
Algumas questões com que o senhor tem de lidar, e parece lidar até com certo gosto, são os dilemas filosóficos e existenciais do ser humano. O que pensa sobre a autoconsciência – a noção consciente da existência de uma consciência reguladora? Esse é um dilema tão antigo quanto moderno, tratado pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) e também por escritores contemporâneos. Como lidar com essa questão e, ao mesmo tempo, buscar no corpo humano o lugar físico onde essa consciência é forjada?
Infelizmente, posso apenas responder a pergunta do ponto de vista científico. Na ciência, queremos perceber como o sistema nervoso e suas vias de comunicação podem construir os elementos que nos permitem saber que estamos vivos e temos sentimentos. O que me apetece é saber como o cérebro é capaz de construir essa imagem que temos de nós próprios e daquilo que nos rodeia. Esse é um problema complexo, que remonta ao início do século passado.
À medida que temos mais conhecimento dos neurônios e do modo como eles se interligam, das diversas regiões do cérebro e da maneira como elas trabalham, vamos começando a criar uma ideia de como isso é possível. Mas é um problema enorme, um problema que não está resolvido completamente, mas estamos a fazer progresso.
Esse é provavelmente o ponto do meu trabalho. Sei que há um aspecto que pode ser tratado pela filosofia e por outras produções intelectuais. Tem a ver com como esses conhecimentos influenciam o nosso modo de vida, o modo como olhamos para os outros, como percebemos as estruturas sociais e como a própria história humana está a ser construída. Mas esse é outro experimento, que me interessa muito como ser humano, mas é um problema do qual não posso tratar porque não tenho os meios científicos para fazê-lo.
Thiago Camelo
Especial para Ciência Hoje/ RJ