Sobre antidepressivos, amadurecimento e identidade

Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Lançados no mercado no final dos anos 1980 e popularizados a partir dos anos 1990, os antidepressivos ISRS (inibidores seletivos da recaptação da serotonina) passaram a ter forte impacto nos modos pelos quais nos relacionamos com nossos mal-estares psicológicos. Porém, um grupo sofreu tal efeito de maneira sensivelmente diferente, os adolescentes e adultos jovens, que cresceram e amadureceram sob o efeito de tais medicamentos. É esse o caso de Katherine Sharpe, mestre em literatura pela Universidade Cornell, que usou sertralina e outros ISRS dos 18 aos 28 anos.

Essa faixa etária é o foco principal do seu livro, o que fica claro no título original, Coming of age on Zoloft, cujo sentido se perdeu ao se optar por A cura da infelicidade na edição brasileira. Na busca pela identidade e pelo ‘verdadeiro eu’ que marcaria a transição para a vida adulta, como distinguir os efeitos ‘artificiais’ da medicação das experiências ‘naturais’ da vida? O que é ‘meu’? O que é proporcionado pelo remédio? E como saber quem de fato somos se tomamos antidepressivos desde os 10 ou 15 anos?

Alívio e libertação?

Sharpe aborda essas e outras questões alternando narrativas pessoais com tópicos de divulgação científica. Nos trechos biográficos/autobiográficos, a autora apresenta sua experiência com os antidepressivos, assim como a de 40 pessoas entrevistadas por ela, que também começaram a tomá-los quando jovens. Se as razões para o uso dos ISRS são distintas, igualmente diversas são as reações pessoais ao diagnóstico e à prescrição. Há frequentemente um sentimento de “alívio”, “libertação” e de “ser parte de um grupo”, mas também a experiência de se sentir “arrasado”, impotente e estigmatizado.

capa do livro A cura da infelicidadeO mais marcante em muitas histórias por ela narradas, especialmente entre os jovens que têm uma postura ‘positiva’ frente aos remédios, é o esforço de redescrição do passado a partir da concepção biomédica da depressão. Vários dos entrevistados passam a reavaliar experiências da infância ou início da adolescência em busca dos primeiros traços da ‘doença’ e do ‘desequilíbrio químico’.

Fragilidade, nervosismo, insegurança e devaneios experimentados quando crianças passam a ser candidatos a sinais precoces do transtorno depressivo. Sharpe também sublinha a mudança de vocabulário que faz com que palavras frequentemente usadas para falar sobre o ‘incômodo comum’ (como insônia, sentimentos de insuficiência e incompreensão, tristeza, conflito e exaustão) sejam eliminadas ou automaticamente associadas a ‘problemas de saúde mental’. Aqui, a autora tangencia o tópico da ‘medicalização’, bem estudado por autores como o sociólogo norte-americano Peter Conrad (que infelizmente não é citado no livro).

Em parte dos entrevistados – e no relato da própria autora –, o uso de ISRS é associado ao fantasma da mudança de personalidade e ao receio do desaparecimento de sentimentos que, mesmo incômodos ou disfuncionais, eram parte do modo de lidar consigo e com o mundo. Sharpe mostra que esse tipo de medo não é fruto apenas da desinformação da mente leiga.

Efeito Prozac

Em um dos capítulos ‘científicos’, ela descreve o quanto o imaginário coletivo sobre os antidepressivos nos Estados Unidos foi marcado pelo livro Ouvindo o Prozac, best-seller do psiquiatra Peter Kramer, publicado em 1993. Kramer enfatizou o quanto o Prozac, em seus pacientes, parecia não apenas melhorar os sintomas da depressão, mas também provocar sutis alterações da personalidade, fazendo com que os pacientes se sentissem “mais que bem” – o que levou o autor a cunhar a expressão “psicofarmacologia cosmética”.

Se não se encaixa totalmente na literatura de autoajuda, a obra também não pode ser descrita como pesquisa etnográfica acadêmica, nem exclusivamente como jornalismo científico

Sharpe acerta quando comenta que o livro de Kramer – ao lado da intensa publicidade sobre psicofármacos dirigida diretamente ao consumidor, permitida pela FDA (agência norte-americana que controla drogas e alimentos) a partir de 1997 nos Estados Unidos – não apenas ‘refletiu’ o que os antidepressivos eram, mas ‘moldou’ um novo modo de se relacionar com essas substâncias.

Na introdução, Sharpe adverte que seu trabalho “não quer levantar polêmica nem é um livro de autoajuda”. Se não se encaixa totalmente na literatura de autoajuda, a obra também não pode ser descrita como pesquisa etnográfica acadêmica, nem exclusivamente como jornalismo científico. Ao resistir a categorizações e buscar ser abrangente, a autora produziu um texto acessível a leitores menos familiarizados com o tema, mas acabou deixando diversos debates a meio caminho.

Talvez o receio da polêmica a tenha impedido de explorar com mais profundidade as hipóteses de cunho socioantropológico que articulam a depressão com os imperativos de felicidade, sucesso e autenticidade nos Estados Unidos, com a insegurança gerada pela extrema liberdade e mobilidade da vida contemporânea ou com a impossibilidade de os alunos admitirem e compartilharem suas fragilidades no ambiente competitivo dos campi universitários.

Sua principal contribuição é dar voz a sua geração, mostrando que a adesão pragmática aos psicofármacos não exclui a atitude crítica e reflexiva frente aos efeitos desses medicamentos na vida de cada um e no mundo atual.

A cura da infelicidade
Katherine Sharpe
Belo Horizonte, 2013, editora Gutenberg
304 páginas – R$ 34,90


Rossano Cabral Lima

Instituto de Medicina Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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