Trânsito livre nos vasos sangüíneos

Desenvolvimento da placa de ateroma (em laranja) no interior do vaso sangüíneo

Um composto desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), batizado de LipoCardium, poderá tratar e até prevenir a aterosclerose. Originada por fatores como hipertensão arterial, consumo excessivo de gorduras e tabagismo, a aterosclerose é uma inflamação na parede dos vasos sangüíneos que reduz seu diâmetro interno, devido ao acúmulo de placas de gordura chamadas ateromas, dificultando, assim, a passagem do sangue. O novo produto utiliza uma substância com estrutura semelhante à das gorduras: as prostaglandinas, pequenas moléculas com ação antiinflamatória formadas no interior das células. Por serem tóxicas para o organismo, essas moléculas são injetadas na corrente sangüínea dentro de pequenas ‘capas’, chamadas lipossomos, e liberadas apenas no local exato da lesão.

 
Atualmente, as principais formas de tratamento da aterosclerose são: a ingestão de antioxidantes, como a vitamina E, para reduzir a inflamação e frear a formação das placas de gordura; a utilização de bloqueadores de cálcio, para evitar a perda da elasticidade dos vasos afetados e a ativação de reações bioquímicas indesejáveis; e a implantação de balões e malhas metálicas por meio de um cateter no local da lesão, de modo a aumentar o diâmetro interno do vaso e possibilitar a passagem do sangue. “No entanto, cada uma dessas terapias apresenta limitações”, aponta o farmacêutico-bioquímico Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior, do Departamento de Fisiologia da UFRGS e coordenador do projeto. “Os antioxidantes, por exemplo, não dissolvem as placas de gordura que já haviam se formado antes do início do tratamento. O uso de balões e o implante de malhas metálicas, por sua vez, não impedem que o problema volte a acontecer.”
 
A solução encontrada pelos cientistas foi a utilização das prostaglandinas, que atuam como hormônios locais no corpo humano, agindo sobre funções como a regulação da secreção gástrica, a coagulação do sangue e a indução do trabalho de parto. Das 36 prostaglandinas conhecidas, os pesquisadores selecionaram as ciclopentenônicas (CP-PGs, na sigla em inglês) – formadas por cinco átomos de carbono ligados na forma de um anel –, que impedem a inflamação e a multiplicação celular, fenômenos relacionados à formação dos ateromas.
 
Após desenvolver a nova formulação contendo as CP-PGs em laboratório, a equipe testou o tratamento em camundongos, que receberam durante quatro meses uma dieta rica em gorduras. A substância mostrou-se capaz de dissolver as placas de gordura acumuladas nas artérias dos animais, além de impedir a formação de novos ateromas. Para eliminar os efeitos tóxicos das prostaglandinas em contato direto com o sangue, o grupo envolveu as moléculas em lipossomos, vesículas de gordura que funcionam como uma espécie de ‘capa’ equipada com anticorpos que as ligam às células endoteliais, formadoras das paredes internas dos vasos. “É como uma operação cavalo de Tróia: somente depois de entrar nas células, os lipossomos liberam as CP-PGs”, compara Homem de Bittencourt.
 
Uma vez em contato com as células lesadas, as prostaglandinas interrompem o processo inflamatório porque inibem a ação das proteínas que alertam o sistema imunológico sobre a existência do problema. Dessa forma, as células de defesa param de se acumular sobre a lesão. Além disso, as CP-PGs evitam a multiplicação das células endoteliais, que formariam uma espécie de cicatriz, tornando a parede do vaso mais espessa e impedindo a passagem do sangue. Outro efeito benéfico da substância é a indução da apoptose, ou seja, o ‘suicídio’ das células muito doentes. As células com lesões menos graves, por outro lado, são curadas pela ação das prostaglandinas.
 
O farmacêutico-bioquímico aposta que o novo composto, além de tratar a aterosclerose, pode prevenir o problema. “Todos nós acumulamos gorduras em nossas artérias desde a vida dentro do útero, por influência direta da dieta de nossas mães”, lembra. “O LipoCardium poderá impedir que esse acúmulo natural se torne patológico, evitando a formação dos ateromas, sobretudo nos casos em que há histórico familiar de colesterol alto.”
 

Segundo Homem de Bittencourt, serão necessários pelo menos cinco anos para que o novo composto esteja disponível no mercado. “Ainda precisamos fazer mais testes sobre sua toxicidade em camundongos e verificar o limite de segurança para definir as doses a serem administradas. Depois disso, testaremos o LipoCardium em coelhos e cães e, por último, em humanos”, explica. O pesquisador já obteve o registro de patente da nova formulação no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e a UFRGS está negociando a produção do medicamento por indústrias farmacêuticas brasileiras.

Catarina Chagas

Ciência Hoje/RJ

 

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