Das casas, restam apenas as soleiras das portas; no salão do teatro onde antes se encenavam óperas, reina o capim. A Igreja Matriz, que um dia reuniu preces e casórios, resiste em ruínas. A cidade é São João Marcos, na região do Vale do Paraíba, às margens da antiga Estrada Real, no interior do Rio de Janeiro.
Um dos mais prósperos municípios do país durante o ciclo do café no século 19, São João Marcos foi demolida em 1940 para dar lugar ao lago de uma represa hidrelétrica que teve a capacidade aumentada a mando do então presidente Getúlio Vargas. Esquecida por mais de 70 anos, sem nunca ter ficado submersa, a cidade agora tem sua história resgatada com a criação do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos.
O parque, inaugurado em meados do ano passado, é um museu a céu aberto que apresenta ao público a estrutura básica das ruas do centro da cidade e o que sobrou de suas construções. Em um pequeno Centro de Memória estão expostos alguns objetos deixados para trás pelos antigos moradores, como serrotes, pilões, panelas, chaves, garrafas e até tornozeleiras de ferro usadas pelos escravos no século anterior à destruição de São João Marcos.
Segundo Luís Felipe do Amaral, representante do Instituto Light – responsável pela criação do parque, que cobre 33 mil m2 – e seu gestor executivo, foram necessários cerca de dois anos de escavação e limpeza para trazer à vista os restos da cidade. Todo o trabalho foi monitorado por arqueólogos do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) em conjunto com historiadores e engenheiros.
“Quando iniciamos o projeto, São João Marcos era só mato”, diz Amaral. “Agora, visitá-la é como entrar em uma máquina do tempo: conseguimos imaginar as pessoas vivendo sua rotina, as casas mais ricas, as mais simples, o entra-e-sai nas igrejas, crianças brincando na praça, uma peça de teatro à noite, o som de um ‘bom-dia’ ao cruzar a rua e até as negociações dos barões de café.”
E assim devia ser São João Marcos. A cidade começou como uma vila em meados do século 18 e cresceu graças ao prolífico mercado do café, que foi se estabelecendo nas fazendas ao seu redor. No século 19, existiam 150 propriedades em torno da cidade, sendo a principal a Fazenda Olaria, do coronel Joaquim de Souza Breves, amigo de Dom Pedro I e conhecido como o ‘Rei do Café’ durante o Império.
O peso econômico da região era tanto que ela recebeu a primeira estrada de rodagem do Brasil, com 40 km de extensão, para escoar o café das fazendas até o porto de Mangaratiba.
“A cidade de São João Marcos ganhou muito destaque durante o ciclo do café, quilos e quilos do grão saíam de lá para o porto de Mangaratiba, mas, mesmo antes disso, ela era importante por ser parte da ligação entre São Paulo e a serra do Mar”, conta o historiador e arqueólogo responsável pelas equipes de escavação da cidade, Ondemar Dias, do IAB.
Segundo Dias, entre os séculos 18 e 19, a cidade foi ponto de parada de viajantes e mantinha um movimentado comércio de carnes, açúcar e escravos, o último liderado pelo coronel Breves, que chegou a ter mais de três mil homens sob seu comando.
Uma das personalidades que se hospedaram em São João Marcos foi D. Pedro, quando seguia para São Paulo, onde proclamou a independência do Brasil em relação a Portugal. “Na viagem até o Ipiranga, o imperador contou com a escolta de moradores da cidade”, conta Dias.
Do auge à decadência
No final do século 19, São João Marcos chegou a ter 18 mil habitantes. Mas, com a construção da estrada de ferro Dom Pedro II, em 1858, e com o declínio do café – puxado pelo fim da escravidão, em 1888, e pela virada da República, em 1889 –, a cidade começou a viver um período de decadência.
O declínio foi potencializado pela construção da barragem de Ribeirão das Lajes, em 1907, pela Rio de Janeiro Tramway Light and Power Company – companhia de energia elétrica fluminense hoje chamada de Light.
A represa, abastecida com as águas do rio Paraíba do Sul, visava suprir a falta d’água da capital, mas, de acordo com o historiador Ney Carvalho, que também participou do resgate da cidade, a construção causou uma epidemia de malária que vitimou mais de dois mil moradores e fez cerca de 900 mortos.
Alguns anos mais tarde, a cidade sofreu um golpe definitivo. Ameaçada por um projeto de ampliação da represa, São João Marcos se tornou a segunda cidade a ser tombada no país, por seus marcos arquitetônicos. O tombamento, no entanto, não foi suficiente para protegê-la e ela se tornou a primeira cidade a ter revogado seu tombamento, o que ocorreu por meio de decreto de Getúlio Vargas.
Em 1940, São João Marcos começou a ser demolida. Os fazendeiros venderam suas terras e os moradores do centro foram indenizados e obrigados a deixar suas casas. A igreja matriz, construída em 1796 e maior prédio da cidade, foi o último a ser demolido em 1943.
Reza a lenda que ninguém tinha coragem de destruí-la, com medo de cometer sacrilégio. Mesmo depois da ampliação da barragem de Ribeirão das Lajes, o centro da cidade não ficou totalmente debaixo d’água porque a represa nunca foi usada em sua capacidade máxima.
Segundo Amaral, ainda assim a demolição era necessária para evitar o retorno da população, que estaria em perigo caso a represa passasse a usar mais água. Já Dias acredita que a destruição da cidade se deu por um erro de cálculo dos engenheiros. “Não havia necessidade de demolição”, afirma. “Foi uma perda muito grande. Se São João Marcos ainda estivesse de pé seria uma espécie de Paraty da serra, um importante ponto turístico e cultural.”
Retratação
A criação do parque funciona como um pedido de desculpas informal. Além de ser aberto à visitação e movimentar o turismo da região, projetos educacionais em vigor visam dar um retorno à comunidade local. Em uma das iniciativas, cartilhas que informam sobre a história de São João Marcos e também sobre educação ambiental são distribuídas para alunos e professores de escolas municipais de Rio Claro e Rio de Janeiro.
O parque mantém ainda um projeto de reflorestamento, com a participação de crianças. Estão sendo replantadas árvores típicas locais, como aroeira-pimenteira, ipê-amarelo, jatobá, jequitibá e graviola. “Queremos contribuir para aprimorar as condições econômicas e sociais dessa região”, diz Amaral. “Sobretudo os ex-moradores e seus parentes se alegram em ver essa história ressurgir e servir de ferramenta educacional.”
Sofia Moutinho*
Ciência Hoje/ RJ
* A jornalista viajou a São João Marcos a convite do Instituto Light.