Como os dinossauros eliminavam os resíduos líquidos de seu corpo? Se a resposta ‘pelo xixi’ lhe parece óbvia, saiba que até bem pouco tempo atrás não havia evidências de que esses animais urinavam: pensava-se que eles excretavam apenas materiais sólidos, a exemplo da maioria das aves, consideradas seus parentes mais próximos. Mas a descoberta recente de dois urólitos – rastros fossilizados de líquidos – no município paulista de Araraquara demonstrou que pelo menos alguns dos gigantes pré-históricos acumulavam reservas de água no corpo.
Os urólitos encontrados, cujo nome ao pé da letra significa ‘urina em pedra’, na verdade não apresentam os componentes da urina. “Estimamos que eles tenham cerca de 145 milhões de anos, e a matéria orgânica depositada não sobrevive tanto tempo assim”, explica o paleontólogo Marcelo Fernandes, que desenvolveu a pesquisa em sua tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Fernandes procurava em Araraquara rastros de animais pré-históricos na pedreira São Bento, de onde se extrai material para o calçamento das ruas da cidade. Essa pedreira faz parte da formação Botucatu, região conhecida pela ocorrência dos chamados icnofósseis (marcas preservadas em rochas sedimentares que indicam a passagem de um organismo sobre a superfície em tempos remotos), que incluem desde marcas de insetos até pegadas de dinossauros, ou mesmo pingos de chuva fossilizados.
O pesquisador e sua equipe – formada pela bióloga Luciana Fernandes, da Universidade Federal de São Carlos, e pelo geólogo Paulo Souto, da UFRJ – se surpreenderam ao encontrar duas formas completamente diferentes de qualquer rastro descoberto anteriormente. “Eram rochas com sulcos em forma de elipse e um longo fluxo escorrido de areia, em um plano inclinado”, conta.
A associação com a urina veio a partir das características ambientais da região, que, no final do período Jurássico (de 208 a 144 milhões de anos atrás), constituía o maior deserto de areia do planeta: para se adaptar a um meio tão árido, os animais precisavam armazenar água no corpo. “Ocasionalmente, quando havia maior disponibilidade de água no ambiente, eles poderiam eliminar o excesso na forma de urina”, esclarece Fernandes.
O ambiente, chamado de paleodeserto, também ajudou a equipe do paleontólogo a imaginar que tipo de dinossauro eliminou os líquidos. Como as poucas aves que urinam (o avestruz, a ema e o casuar australiano) vivem em locais áridos ou semi-áridos, acredita-se que os resíduos sejam de um ornitópode (dinossauro herbívoro com pés semelhantes aos de pássaros), devido ao seu grau de parentesco com essas aves de grande porte. As pegadas desses animais são facilmente visualizadas em Araraquara, inclusive nas calçadas das ruas.
Além de comparar os urólitos encontrados com os rastros deixados pela urina de um avestruz vivo, Fernandes realizou experimentos que simulavam a eliminação de líquidos em solo arenoso. “A semelhança entre as marcas (do fóssil, do avestruz e do experimento) não deixa dúvidas de que encontramos registros de urina”, diz. Assim, ele conseguiu provar que pelo menos os dinossauros que viviam em áreas desérticas eram capazes de urinar.
A cidade das calçadas jurássicas
Com a descoberta dos urólitos, Araraquara ganha mais um argumento a favor do reconhecimento da importância de seu acervo paleontológico. Conhecida pelos especialistas como ‘a cidade das calçadas jurássicas’, ela conta com o apoio da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) e das universidades italianas de Gênova e Pisa para alavancar a construção de um museu paleontológico, que promete estimular o turismo na região.
“Esse é o único lugar do Brasil onde são encontrados vestígios da existência de dinossauros e de mamíferos do final do período Jurássico”, conta Fernandes. Por enquanto, o projeto, que faz parte do plano de metas da prefeitura, ainda não tem data certa para sair do papel.
Atualmente, o lar permanente dos dois urólitos é o Museu Histórico de Araraquara, mas uma das placas poderá ser vista até o dia 30 de abril na Oca do Parque Ibirapuera, na capital paulista, onde está em cartaz uma exposição sobre dinossauros e outros animais pré-históricos. Lá também estão expostos outros icnofósseis encontrados na formação Botucatu: uma coleção de 45 peças, com pegadas de dinossauros, de mamíferos e de animais invertebrados, como escorpiões e besouros.
Lia Brum
Ciência Hoje/RJ.