As vaias e os xingamentos, universalmente associados a descontentamentos e intimidações, mas também a ironias e jocosidades, são poderosos instrumentos de vocalização de vontades e juízos esportivos. O futebol, como se sabe, é o momento ritualizado do fruir individual ou coletivo desse linguajar peculiar, amplificando aspectos da natureza competitiva própria dos esportes – aspectos também presentes em quase todas as formas da vida em sociedade.
Não é à toa que se fala em jogo político, disputa econômica, guerra dos sexos, luta de classes e tantos termos analíticos ou metafóricos que colocam em evidência os estereótipos de classe, as oposições entre papéis sociais, as fissuras entre o público e o privado e as relações de poder, étnicas, raciais e de gênero. Se as transformações históricas renovam continuamente a sensibilidade no trato das diferenças, sejam elas étnicas, culturais ou de outra origem, a universalização e constância da linguagem dos palavrões e impropérios mantêm-se notavelmente, no correr dos tempos, como mecanismo comunicativo de grande eficácia.
Sob certa perspectiva, o uso dessa linguagem áspera, que denota quase sempre algum enfrentamento diante do outro, consistiria em um exercício figurado do embate físico, uma transformação decorrente do fenômeno que autores como o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) denominaram “processo civilizador”. Embora o uso indiscriminado desse tipo de linguagem seja hoje condenável, pode ter servido, em várias situações da vida, como um índice de civilidade entre adversários, que, de certo modo, abriram mão do enfrentamento físico na resolução de suas diferenças.
Já no futebol, sem a possibilidade de disputar a posse da bola, condição restrita aos jogadores em campo, restaria aos torcedores lançar mão dos insultos para tentar subjugar e humilhar os adversários. Tais disputas verbais, certamente mais toleráveis que os confrontos físicos ainda tão presentes no futebol, não são isentas de ambiguidades, carregando forte dose de violência simbólica.
Foi o que se viu na última Copa do Mundo, realizada no Brasil, na qual a Federação Internacional de Futebol (Fifa) revelou suas preocupações com a questão em tentativas de disciplinar os excessos verbais dos torcedores nas arquibancadas – os quais geraram alguns desconfortos, confirmando sua natureza de confrontação.
Usos e abusos
Durante a Copa, a Fifa ameaçou coibir o comportamento daquelas torcidas que mostrassem, física ou verbalmente, qualquer inclinação à intolerância racial ou de gênero. O primeiro forte indício da validade dessas preocupações foram os gritos de “puuuuuuto” (vindos, sobretudo, de torcedores mexicanos e entoados quando os goleiros contrários repunham a bola em campo, no tiro de meta), para atribuir ao adversário uma condição supostamente fragilizada e condenável de homossexual, maricón ou, para usar um termo comum entre torcedores brasileiros, ‘bicha’. A torcida brasileira também esteve na mira da Fifa quando incorporou a ‘contribuição’ mexicana a seu minguado repertório de cantos – como o nacionalista “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” – e xingamentos.
Essa escassez de ‘palavras de ordem’, para alguns analistas, viria do perfil predominante de ‘torcedores de Copa’, estereotipados como “torcedores coxinhas”, por sua maior identificação com a elite branca, de pouca tradição e assiduidade em estádios. Essa condição explicaria a falta de maior repertório e a escolha inadequada do momento para usar xingamentos, cantos e gritos de guerra durante uma partida.
É improvável que, ao copiar os mexicanos, os torcedores brasileiros tenham usado a palavra com os mesmos significados pejorativos que atribuídos a ela pelos demais torcedores latinos, embora em nossas arquibancadas sejam com frequência ouvidos xingamentos que explicitam preconceitos.
Nesse caso, pode ter havido algo como uma reação estetizada e contrastiva, já que o substantivo ‘puto’, na fala comum do brasileiro, sofreu deslocamentos sintáticos e ganhou outros significados, como, por exemplo, intensidade ou qualidade: estar ‘puto da vida’ ou presenciar um ‘puta jogo’ de futebol. Em outros jogos do Brasil, ‘puto’ foi transformado em ‘burro’, com o tom usado pelo coro torcedor surtindo os mesmos efeitos.
As agressões verbais e corporais presentes na sociedade brasileira trazem evidentes sinais e conotações de gênero muito pouco coibidos até recentemente. Hoje, a visibilidade das experiências afetivas homoeróticas pelas ruas das capitais (como o cotidiano desfilar de casais do mesmo sexo de mãos dadas), as mobilizações políticas de grande repercussão (como as paradas LGBT) ou a maior presença desse comportamento nos meios de comunicação (em filmes, em novelas e no noticiário), preenchem a paisagem com uma diversidade até há pouco tempo ausente nos espaços públicos, trazendo outros sinais e uma nítida mudança na sensibilidade urbana – à revelia dos intolerantes.
Os estádios não estão imunes aos tempos, mas é notório como ainda mantêm as barricadas dos preconceitos, destacando-se o quase silêncio da crônica esportiva a esse respeito, salvo quando o alvo da atitude racista é algum jogador.
Sendo assim, a Fifa, com suas determinações civilizatórias, acredita poder fazer com que os torcedores deixem de usar a linguagem agressiva tão presente na esfera esportiva, acionando com isso processos psíquicos e sociais que tragam alguma consciência à sociabilidade futebolística. É de espantar que esse movimento, já presente nas ruas, permaneça praticamente ausente no comportamento das arquibancadas.
Luiz Henrique de Toledo
Laboratório de Práticas Lúdicas e Sociabilidade
Universidade Federal de São Carlos