Impossível ficar alheio aos 150 anos, a serem completados em 2009, do livro A origem das espécies, do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). É quase um dever celebrar essa obra, que marca uma mudança radical de pensamento humano em relação à natureza.

No entanto, dificilmente uma mudança desse porte resulta do trabalho de apenas um indivíduo. A história da ciência revela que grandes descobertas resultam invariavelmente de contribuições de diversos atores. No final da seqüência, alguém propõe uma teoria integradora e abrangente. O ato associativo característico das idéias revolucionárias pode envolver mais de uma cabeça, às vezes muitas. Na verdade, em ciência, descobertas simultâneas e independentes parecem constituir a norma, e são resignadamente consideradas pelos cientistas como ‘ossos do ofício’.

A teoria da seleção natural, é claro, não poderia ser exceção. Para começar, Darwin não teve um lampejo de inspiração, elaborando seu livro a partir do nada. Muitos trabalhos anteriores lançaram as sementes da visão evolucionista. Nessa trajetória pode ser destacado o próprio avô de Darwin, Erasmus Darwin (1731-1802), que muito antes já nutria a idéia da seleção natural. A mensagem do avô, sem dúvida, sedimentou-se subliminarmente no neto.

O francês Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829) também foi fundamental como promotor dessa idéia. Darwin inclusive admite, em A origem das espécies, a idéia de Lamarck de que características adquiridas pelos seres vivos poderiam ser transmitidas aos descendentes. Conhecida como ‘herança de caracteres adquiridos’, tal idéia seria refutada mais tarde, quando os mecanismos genéticos ficaram conhecidos. Mas a ‘sombra’ de Darwin foi o também inglês Alfred Russel Wallace (1823-1913), que trilhou praticamente o mesmo caminho.

A mesma idéia

O naturalista inglês Alfred Wallace (1823-1913) formulou a teoria da seleção natural junto com Charles Darwin, de forma simultânea e independente.

Wallace colecionou besouros e os classificou de acordo com suas características anatômicas, realizou duas grandes viagens (uma à Amazônia e outra à Ásia), leu o economista Thomas Malthus (1766-1834) e finalmente escreveu o ensaio ‘Sobre a tendência das variedades de se distanciar indefinidamente a partir do tipo original’, enviado a Darwin, a quem Wallace admirava, para críticas e sugestões.

Esse ensaio continha a mesma idéia que o colega já ‘costurava’ há 20 anos. Foi essa consulta que precipitou a histórica apresentação conjunta dos dois trabalhos, em julho de 1858, na Sociedade Linneana, assim como a publicação de A origem das espécies.

Cabe aqui a pergunta: por que não nos referimos à teoria da seleção natural como ‘wallacismo’? Embora hoje vários autores tentem resgatar o papel igualmente importante de Wallace, a personalidade que o mundo reconhece nesse campo é sem dúvida a de Darwin. Ninguém faz peregrinação à casa de Wallace ou visita seu túmulo.

Diversas interpretações tentam explicar como Darwin obscureceu Wallace. As mais comuns invocam a maior envergadura de Darwin como naturalista e sua forte inserção no círculo acadêmico da época. Como dizem Andrew Berry e Janet Browne em artigo (‘O outro caçador de besouros’) publicado recentemente (26 de junho) na revista científica Nature, a posteridade invariavelmente ignora o segundo lugar.

Modéstia e satisfação
Mas por que esse ‘segundo lugar’? Pela cronologia registrada, Wallace poderia ter sido o primeiro a publicar a idéia da evolução por seleção natural. Não o fez talvez por insegurança e pela necessidade de obter a ‘bênção’ de Darwin antes de enfrentar as críticas que certamente viriam. Segundo Berry e Browne, o próprio Wallace teria contribuído para a equivocada noção de segundo lugar por sua postura genuinamente modesta e, sobretudo, de absoluta satisfação com o fato científico que emergiu. Ser coadjuvante nesse ‘drama’ já teria sido, para ele, suficientemente recompensador.

Algumas décadas mais tarde, outra personagem adotou a mesma atitude. A inglesa Rosalind Franklin (1920-1958), que indiretamente forneceu a James Watson dados experimentais fundamentais para a descrição da estrutura da molécula do DNA, ficou fascinada diante de um modelo correto, a ponto de não requerer para si uma parte dos louros. São exemplos raros de verdadeiros pioneiros que colocam a ciência acima do ego.

Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected]

 

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