Qualquer lista relacionando os 100 livros mais relevantes e influentes do século passado não poderia deixar A estrutura das revoluções científicas de fora, sob pena de ter seus critérios de escolha devidamente contestados. As ideias contidas nessa obra transformaram radicalmente a imagem da ciência que predominara até então.
Como consequência, as áreas de história, sociologia e filosofia da ciência nunca mais foram as mesmas depois de 1962. O livro inspirou até os chamados science studies (estudos sobre ciência), campo responsável pelas mais ricas discussões sobre a ciência nos nossos dias.
A estrutura – traduzida pela primeira vez no Brasil em 1975 – deixou marca indelével em praticamente todos os campos do saber, a ponto de o filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) ter sentenciado que Kuhn contribuiu para remodelar a cultura humana como um todo – notadamente, para borrar a fronteira demarcatória entre ciências naturais, sociais e humanas.
O sucesso da obra não deve, todavia, ser identificado apenas com a atitude de aprovação. Pelo contrário. Se houve autor alvo de ataques contundentes (e virulentos), esse foi Kuhn. Tanto assim que empregou, em grande medida, sua produção acadêmica pós-1962 para responder às críticas, alegando sempre ter sido mal compreendido.
Críticas
O que teria levado Kuhn, então, a sofrer tamanha ‘perseguição’? Em grande parte, isso se explica pelo modo como ele descreveu o desenvolvimento da ciência, uma vez que este se distinguia substancialmente da forma como, até então, o progresso científico fora interpretado. A nova imagem de ciência proposta por Kuhn pode ser assim esquematizada: ciência normal – crise – revolução científica – nova ciência normal, e assim sucessivamente.
Em linhas gerais, a ciência normal é uma modalidade de pesquisa conduzida sob os auspícios de um paradigma, sendo este responsável por instaurar um consenso em vários níveis (metodológico, epistemológico, ontológico e axiológico) no interior de uma comunidade.
Nessa fase, os cientistas lidam com ‘operações de limpeza’ em seu trabalho cotidiano, no sentido de precisar resolver, de maneira personalizada e criativa, quebra-cabeças; ou seja, aprofundar o conhecimento sobre os ‘fatos’; aprimorar o próprio paradigma; e aumentar a correspondência dos ‘fatos’ com esse último.
No período de ciência normal, a pesquisa progride de modo linear e cumulativo, graças ao consenso generalizado engendrado pelo paradigma. A confiança no paradigma pode ser quebrada, entretanto, quando os quebra-cabeças da prática normal se tornam anomalias, isto é, problemas que, a princípio, não são mais passíveis de solução.
A crise instaurada em função da estagnação do paradigma vigente pode ter como desfecho possível uma revolução científica, episódio de desenvolvimento não cumulativo em que um paradigma é substituído por outro, incompatível com o anterior.
Foi, efetivamente, com relação ao tópico das revoluções científicas que Kuhn despertou a ira de seus contemporâneos. Afinal, a leitura mais comum compreende que Kuhn estaria comparando – ao afirmar que, na disputa entre paradigmas concorrentes, não se pode recorrer a critérios estritamente lógicos e empíricos para decidir a querela – a ciência com outras formas de conhecimento normalmente consideradas ‘irracionais’ ou ‘subjetivas’.
Inclusive, no livro, Kuhn estabelece analogias surpreendentes entre essas formas de conhecimento e a revolução científica: mudança de perspectiva (gestalt), diálogo de surdos, revolução política, conversão religiosa etc. Tudo isso para ilustrar a tese – denominada por ele incomensurabilidade – segundo a qual não haveria possibilidade de se estatuir um juiz neutro para bater o martelo, de modo inequívoco, em prol de um dos dois lados.
Paradigmas, portanto, argumentariam sempre de forma autorreferente, não havendo possibilidade de se lançar mão da coerência lógica e racional, nem da correspondência com a verdade sobre a natureza.
Provocação
Nada poderia soar mais provocador para os defensores da ciência como modelo de racionalidade e objetividade. Em obras posteriores, Kuhn tentou desfazer os mal-entendidos sobre seu ‘irracionalismo’, ‘subjetivismo’, ‘relativismo’… Sua alegação básica foi afirmar que a incomensurabilidade, ao contrário do que pensaram seus adversários, seria justamente a condição necessária para que a ciência continuasse progredindo, no sentido de investigar parcelas da realidade até então desconsideradas.
A incomensurabilidade propiciaria o advento de novas especialidades científicas – daí sua proposta estar afinada com as concepções que defendiam uma racionalidade especial da ciência.
Sem querer entrar nessa disputa por ora, o fato é que, curiosamente, suas ideias foram incorporadas principalmente pelas áreas ligadas às ciências sociais e humanas, tendo havido até, a partir da década de 1970, verdadeira corrida em busca de paradigmas perdidos nas diversas disciplinas. Em contrapartida, nas ciências naturais – originalmente o objeto de análise de A estrutura – a recepção das ideias kuhnianas passaram ao largo do entusiasmo.
Seja como for, só o fato de Kuhn não ter explicado a ciência em termos apenas de metodologia – tendo cunhado a noção mais abrangente de paradigma (visão de mundo e valores compartilhados) – representa grande avanço em comparação à concepção de inspiração positivista predominante à época – e, talvez, ainda hoje. Isso sem contar outras contribuições igualmente importantes.
O autor
A compreensão da relevância da publicação de A estrutura seria incompleta ou injusta se não falássemos algo sobre seu autor. Não só o conteúdo do livro é inovador, mas também o que tornou possível sua existência. Kuhn só foi capaz de nos legar obra tão significativa porque viveu a experiência da interdisciplinaridade de modo intenso.
Mais do que isso, Kuhn transitou entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas de modo exemplar, valendo lembrar que, por exemplo, no período final (1958-1959) de gestação de A estrutura, trabalhou no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento, na Califórnia (EUA), que foi fundamental para que concebesse a ideia de paradigma como consenso, ao ter convivido com o dissenso reinante entre os cientistas sociais.
Tendo doutorado em física teórica, Kuhn deu uma guinada para a história e a filosofia da ciência, mas sem ter perdido seu interesse original naquela área. Na verdade, é como se Kuhn tivesse feito esse movimento de ‘sair’ de sua área de formação para buscar ferramentas que lhe permitissem conhecê-la melhor, olhando-a de fora. E, ao entrar nas humanidades, levou toda sua bagagem de cientista, que lhe permitiu causar, ‘naturalmente’, verdadeira revolução dentro daquelas.
A trajetória de Kuhn nos inspira a não pensar mais em termos de dentro e fora, uma vez que seu grande legado foi ter derrubado as fronteiras entre ciências e humanidades. A questão persistente é: como podemos levar para o nível institucional, sem perda da espontaneidade, o que Kuhn fez ‘naturalmente’ durante toda a sua vida?
André Luís de Oliveira Mendonça
Instituto de Medicina Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Antonio Augusto Passos Videira
Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas
Universidade do Estado do Rio de Janeiro