Os humanos não são os únicos animais com as estruturas neurológicas que geram consciência. Essa é a mensagem – que parece tímida, mas pode ter grandes repercussões – da Declaração de Cambridge sobre Consciência, manifesto publicado no dia 7 de julho último durante a Conferência sobre consciência em animais, humanos e não humanos em memória de Francis Crick. Redigida pelo neurocientista norte-americano Philip Low, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e assinada por 25 pesquisadores de renome na área, a declaração afirma que há evidências científicas suficientes para se considerar que mamíferos, aves e até certos invertebrados, como o polvo, têm consciência.

Mas o que é consciência? Para o neurocientista David B. Edelman, do Instituto de Neurociências, em San Diego (Estados Unidos), um dos signatários da declaração, ela “consiste na capacidade de perceber um cenário integrado e de mantê-lo em sua memória”. Edelman, conhecido por seu trabalho sobre o sistema visual do polvo, deixa claro, no entanto, que sua percepção não é necessariamente a dos outros signatários. Mas, então, como todos assinaram o documento?

Nesta entrevista exclusiva à Ciência Hoje, ele fala sobre os conceitos que fundamentam o manifesto, a intenção que motivou a publicação e o temor de alguns cientistas em terem suas palavras distorcidas ou mal compreendidas pelo público.

O que o senhor chama de consciência?
O que chamo de consciência, que não é necessariamente como os outros pesquisadores nesse campo definem o termo, é a ideia de uma cena integrada. Recebemos uma variedade de informações sensoriais – por exemplo, na visão, temos contraste, cor, forma, ângulos –, mas não interpretamos esses dados como entidades separadas, vemos a cena toda, de forma integrada. A consciência consiste na capacidade de perceber esse cenário integrado e mantê-lo em sua memória. Acredito que já se pode afirmar que essa habilidade existe em vários animais além dos humanos, bem mais do que suspeitávamos.

A consciência consiste na capacidade de perceber um cenário integrado e mantê-lo em sua memória

No entanto, faço uma distinção entre essa forma basal de consciência e uma mais avançada: a consciência de si mesmo, a capacidade de se imaginar naquela cena, seja no passado ou no futuro. Há animais que parecem ter essa segunda forma, como o papagaio-cinzento. [A neurocientista norte-americana] Irene Pepperberg realizou um trabalho extenso com um papagaio dessa espécie, o famoso Alex, e ele exibia sinais de que de fato tinha consciência de si. Esse parece ser o caso de alguns primatas em certas circunstâncias, mas acho que limitar o conceito de consciência a essa segunda forma é uma armadilha em que muitos dos meus colegas podem cair.

Então, na declaração, o senhor e seus colegas estão afirmando que alguns animais podem ter consciência, mas não necessariamente terem consciência de si próprios?
Essa é a minha posição, mas tenho que ser cuidadoso. Fui um dos signatários, mas foi Philip Low que patrocinou essa conferência e publicou o manifesto. Concordo com tudo o que está dito ali, mas não creio que o texto seja limitante e não posso falar por todos os outros signatários. Na minha visão, há um número razoável de espécies animais nas quais a consciência existe. Infelizmente, a ciência sobre esse assunto ainda é recente, ainda não testamos todas as possibilidades amplamente. Por isso, o que digo é mais um ‘achismo’ do que uma afirmação científica. Contudo, estudos realizados com macacos-rhesus trouxeram muitas evidências indiretas que sugerem que eles são conscientes de si mesmos. Esse parece ser o caso dos primatas, mas, ao nos afastarmos na ‘árvore’ genética e chegarmos, por exemplo, nos polvos – a minha área de pesquisa –, os dados científicos que podemos usar são bem mais escassos.

Macaco-rhesus
Estudos feitos com macacos-rhesus sugerem que esses animais são conscientes de si mesmos. (foto: Paul Asman e Jill Lenoble/ Flickr – CC BY 2.0)

Como se pode inferir a existência de uma consciência em animais?
Podemos usar os humanos como um ponto de partida – de fato, muitos resultados vêm dos testes com pessoas, que dão respostas verbais sobre o que estão sentindo, por exemplo, “sim, eu tive consciência disso” ou “não, não percebi isso”. Podemos correlacionar isso com atividade cerebral, comportamento e anatomia neurológica. Em humanos, essa neuroanatomia é tão específica que podemos dizer que o córtex cerebral é essencial para armazenar o conteúdo da consciência.

Contudo, o estado de consciência talvez seja algo que nasce da interação entre o tálamo – o relê de entrada dos nossos sentidos no cérebro – e o córtex, em uma espécie de via circular. Se partirmos do pressuposto de que a consciência humana se baseia anatomicamente na presença de um circuito tálamo-cortical, ao lesionarmos essa área, podemos ‘desligar’ a consciência. Isso é visto em alguns pacientes em certos tipos de coma, como em um estado vegetativo persistente. Eles têm o núcleo central do tálamo danificado e nunca recuperarão a consciência, embora ainda haja dúvidas se o diagnóstico é falho e se, em alguns casos, os pacientes ainda estejam conscientes.

Não é um exagero sugerir que humanos, primatas e outros mamíferos têm alguma forma de consciência

O fato é que podemos correlacionar esses dados obtidos com humanos com os conseguidos com animais. Isso é fácil de fazer com mamíferos, que têm um tálamo e um córtex que se parecem com o nosso. Assim, não é um exagero sugerir que humanos, primatas e outros mamíferos têm alguma forma de consciência, baseando-se apenas na anatomia estrutural e funcional do seu cérebro.

Mas e nos outros animais?
As coisas começam a ficar mais complicadas. Nas aves, por exemplo, sabemos agora que há bastante conservação evolutiva na anatomia cerebral em relação à nossa. Achava-se que as áreas do cérebro equivalentes ao córtex nesses animais eram estruturas primitivas, mas os estudos dos últimos 40 anos revelaram que essa região, chamada de pálio, é o córtex das aves. As células que no embrião dos mamíferos dão origem ao córtex são as mesmas que no embrião das aves se transformam no pálio e no hiperpálio. Logo, o argumento de que as aves possam ter consciência é razoavelmente válido, já que o seu cérebro tem as características estruturais e, provavelmente, funcionais para tal.

Você leu apenas o início da entrevista publicada na CH 296. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral.

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