Foi com uma ‘luz’ disposta na cabeça, colocada durante um ritual de proteção espiritual realizado pelo cacique ianomâmi Joaquim Figueiredo, que uma equipe conjunta do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav) e do Parque Nacional do Pico da Neblina partiu, em dezembro último, rumo a cavernas sagradas para aquela etnia indígena na região do alto rio Negro, no Amazonas.
Essa luz serviria para que os espíritos que habitam as cavernas identificassem os homens brancos e nada de ruim lhes acontecesse.
A história, relatada pelo coordenador da equipe e analista do Cecav, o geólogo José Carlos Ribeiro Reino, torna-se mais interessante se considerarmos uma possível coincidência. “Nós, espeleólogos, temos como acessório obrigatório de segurança um capacete com lanterna. Ou seja, durante nossas visitas às cavernas, tínhamos de fato uma luz na cabeça”, comenta.
Guiados por moradores das comunidades ianomâmis Matucará e Ariabu, Reino e sua equipe realizaram a primeira visita oficial de um instituto de pesquisa do governo brasileiro àquelas cavernas.
A iniciativa foi um esforço de desenvolver um campo ainda pouco explorado no Brasil: a etnoespeleologia – ou seja, o estudo das relações dos povos com as cavernas e suas manifestações culturais a respeito delas.
Na região do alto rio Negro, as serras do Baruri e do Gavião são sagradas para os ianomâmis. No entanto, por motivos logísticos e facilidade de acesso, apenas aquelas localizadas em serras no entorno do pico da Neblina foram visitadas durante essa primeira expedição.
O grupo visitou, durante 11 dias, cinco cavernas com menos de 30 m de profundidade – consideradas pequenas, para os parâmetros do Cecav. Os registros fotográficos, audiovisuais e escritos feitos durante a expedição devem passar pela aprovação dos ianomâmis antes que se decida, em conjunto, o que poderá ou não ser publicado pelo Instituto Chico Mendes.
Uma posição já é clara: “os ianomâmis não querem abrir as cavernas para visitação turística, pois muitas delas são sagradas para esses povos”, afirma Reino. O Parque Nacional do Pico da Neblina, sobreposto a três terras indígenas, já não permite atividades turísticas no seu território, mas esse é um processo ainda em discussão.
Biodiversidade
Junto com Reino, fizeram parte da expedição dois geógrafos, um biólogo e um engenheiro químico. Os técnicos fizeram um levantamento físico e biológico dos ecossistemas encontrados nas cavidades, mas não se pode divulgar com precisão o que foi encontrado antes que os indígenas autorizem.
“Não fizemos um estudo biológico nem classificamos as cavernas em graus de importância de preservação porque isso envolveria coleta de animais e outras visitas”, comenta Reino. Para respeitar os desejos das comunidades indígenas, também não foi revelada a localização exata das cavernas. Por esse motivo, também a própria expedição só veio a público meses após ter sido realizada.
O primeiro contato do Cecav com a etnia ianomâmi do alto rio Negro a respeito das cavernas foi feito em julho de 2010, durante assembleia da Associação Yanomami do rio Cauaburi e afluentes (Ayrca), para apresentar o projeto e solicitar autorização para a sua realização.
Segundo Reino, a proposta da expedição foi recebida de forma cautelosa, por medo de se tratar de um projeto de turismo. “Quando deixamos claro que o objetivo era apenas coletar informações referentes aos usos e à importância mítica das cavernas, a autorização do projeto foi mais fácil”, conta.
A ideia, em princípio, era repetir o sucesso da expedição de etnoespeleologia já realizada em 2003 com índios da etnia Waurá, no Mato Grosso.
Mitologia
Mas quais mitos associados às cavernas as tornam sagradas para os ianomâmis? Segundo a antropóloga Maria Inês Smiljanic, da Universidade Federal do Paraná, o xamanismo ianomâmi entende que as serras foram criadas pela divindade Omawë como casas para os hekula – espíritos de plantas, animais e seres mitológicos.
“Os locais de moradia dos espíritos devem ser respeitados, pois da boa vontade destes depende toda a vida sobre a terra”, conta a antropóloga. “Essa ideia não se refere especificamente às cavernas, mas, como há predominância de alguns espíritos em certas regiões, pode ser que o local de moradia de alguns espíritos coincida com a presença de alguma caverna.”
Daí a necessidade, na visão dos ianomâmis, do ritual de proteção realizado pelo cacique Joaquim Figueiredo: os espíritos conseguiriam reconhecer o cheiro e o visual do homem branco, que poderia ser visto como ameaça.
Pela ausência de um antropólogo na expedição – e também pelo cuidado na divulgação das informações –, ainda não é possível discorrer com maiores detalhes a respeito dos mitos relacionados às cavernas.
Reino, no entanto, conta que o próximo passo será justamente esse. “Agora pretendemos continuar o diálogo com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para suprir a carência de uma análise antropológica das cavernas”, afirma.
Segundo o geólogo, está sendo finalizado um relatório sobre a expedição, que deve ser apresentado aos ianomâmis e, em seguida, à Funai, para que outros materiais sejam produzidos. Uma das ideias é produzir materiais em conjunto com as próprias comunidades, em línguas ianomâmis, para seu uso – como na transmissão desse conhecimento aos mais jovens.
“Um problema vivenciado atualmente em muitas comunidades indígenas é a perda das histórias e dos mitos. Há muitas informações que os jovens desconhecem e que poderiam ser repassadas a eles a partir desse projeto”, reflete Reino.
Há relatos de outras cavernas na área do Parque Nacional do Pico da Neblina, como na região do rio Maiá. No entanto, segundo Reino, a possibilidade de realização de outras expedições etenoespeleológicas este ano ainda está em avaliação pelo Cecav por causa de cortes orçamentários feitos pelo governo federal.
Isabela Fraga
Ciência Hoje/ RJ