Os cânceres, até recentemente definidos em função da célula tumoral propriamente dita, hoje são encarados como doenças mais complexas, que envolvem diferentes tipos de células presentes no mesmo microambiente: células de defesa, de vasos sangüíneos e de suporte dos tecidos. Essa nova perspectiva permitiu o surgimento de outros alvos para as terapias contra esses males. À medida que as interações entre essas diferentes células são mais bem entendidas, é possível desenvolver novas formas de tratamento. Além disso, drogas de uso já consagrado contra outras doenças começam a ganhar novas indicações, atuando como tratamento complementar no câncer.
 

Comparação entre um tumor invasivo e seu tecido de origem, ilustrando a aplicação do uso de marcadores que permitem distinguir as células tumorais das normais. À esquerda da imagem, observada em microscópio, está o tecido normal de revestimento do intestino grosso – as células normais, coradas em roxo e mostrando um padrão de alinhamento, formam o revestimento dessa parte do intestino. À direita, as células (coradas em marrom) apresentam um arranjo caótico, desordenado, que invade o tubo digestivo: trata-se de um câncer. A coloração em marrom é obtida pela presença de um marcador desse tumor e permite ao médico patologista, responsável pelo diagnóstico ao nível microscópico, identificar a lesão e, às vezes, predizer seu comportamento.

O que teria acontecido se os alquimistas tivessem descoberto o elixir da vida eterna, uma poção mágica que tornasse imortal quem a bebesse, ou ao menos prolongasse a vida bem além dos limites atuais? Não é difícil imaginar o lado positivo de ter uma vida longa, quase ilimitada. O tempo, porém, continuaria passando, e isso certamente teria conseqüências no organismo, já que certas doenças – e muitos de nós esquecemos esse fato – acompanham, de maneira quase inevitável, o envelhecimento. Os cânceres, também conhecidos como tumores malignos, são assim.

 
Portanto, se vivêssemos 120 ou 130 anos com os mesmos hábitos que temos hoje, invariavelmente teríamos algum tipo de câncer. Pelo menos um, entre as centenas de tipos da doença conhecidos na atualidade. A boa notícia é que, com o desenvolvimento da pesquisa na área biomédica, será possível, no futuro, controlar progressivamente a letalidade da doença. Assim, ela deixaria de causar tantas mortes, como acontece atualmente. O homem do futuro, ao atingir uma idade centenária (ou maior), ainda poderia viver bem, mesmo tendo um câncer, já que este seria controlado clinicamente.
 
Células tumorais, genes e marcadores
Os cânceres são doenças do material genético (o genoma) de nossas células, e decorrem do acúmulo progressivo de mutações, ou seja, alterações no código genético. As mutações fazem com que células que antes executavam um programa bem definido, associado às suas funções em seu tecido de origem, cresçam de maneira descontrolada. Esse crescimento alterado é conseqüência não só da duplicação celular desordenada, mas também da progressiva resistência à morte celular (como se as células tivessem bebido o ‘elixir da vida eterna’).
 
Além disso, as células cancerosas ultrapassam os limites dos tecidos de origem, adquirem a capacidade de modificar o ambiente que as cerca, desrespeitam fronteiras e migram pelos diversos tecidos do corpo, podendo estabelecer novos tumores – as metástases – ao se fixarem em locais distantes do ponto de origem. A capacidade de invadir os tecidos vizinhos e de formar as metástases é responsável, em última análise, pela morte de dois a cada três pacientes com o diagnóstico de câncer.
 
Até o final do século passado, a comunidade científica tinha identificado um número considerável de genes associados de alguma forma aos cânceres. Esses genes, de modo geral, codificam (ou seja, contêm instruções para a síntese de) proteínas que fazem parte de circuitos ou vias essenciais para a vida de uma célula, controlando funções como duplicação, diferenciação, estabilidade do genoma, morte e migração celular. Todas essas funções estão de alguma forma alteradas na célula cancerosa. Essa lista de genes está sendo completada agora com o seqüenciamento completo do genoma humano. Enfim, conhecemos todas as peças do quebra-cabeças. Precisamos agora montá-lo e entender como as peças se encaixam em diferentes situações – por exemplo, durante o desenvolvimento, em condições normais e em doenças, como nos cânceres.
 
A comparação entre células normais e células tumorais tem sido útil em diferentes contextos. Em um primeiro nível, tal comparação facilita o diagnóstico do câncer. Algumas substâncias têm sua quantidade muito aumentada quando um tumor existe; outras são modificadas pela existência do tumor. Estes são alguns exemplos do que chamamos de ‘marcadores’ associados a tumores. Os marcadores são moléculas que servem como uma impressão digital, ou um código de barras, permitindo que reconheçamos o tumor. Em um futuro próximo, eles vão ajudar os médicos a prever o comportamento do tumor e a indicar o melhor tratamento para o paciente.
 
Definidos os marcadores, podemos criar métodos que permitam identificar uma lesão cancerosa ao microscópio, em exames de sangue (como no caso da pesquisa do antígeno prostático – PSA, do inglês prostatic serum antigen – presente no soro) ou em exames de imagem. Esses métodos, porém, não substituem o exame clínico – apenas o complementam. Em um segundo nível, a comparação pode sugerir ao médico que o paciente deve ser acompanhado com mais atenção, por apresentar maior risco de uma recaída da doença. Em um terceiro nível, a comparação tem permitido identificar novos alvos para terapia.
 
Há alguns bons exemplos de moléculas inteligentes, desenvolvidas a partir do conhecimento acumulado de como algumas proteínas codificadas por genes causadores de câncer atuam dentro de uma célula. A primeira dessas drogas, o mesilato de imatinib (Gleevec), foi planejada para bloquear a atuação de uma proteína que favorece a sobrevivência da célula tumoral. É usada, por exemplo, no tratamento de formas de leucemias, sendo eficiente em até 90% dos casos de leucemia mielóide crônica.

Andréia Hanada Otake,
Roger Chammas
Laboratório de Oncologia Experimental,
Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo
e Roberto Zatz
Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

 

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