Foi lançada recentemente a coleção de ensaios de Gilberto Velho Um antropólogo na cidade, organizada por seus ex-alunos Hermano Vianna, Karina Kuschnir e Celso Castro. A coletânea homenageia Gilberto um ano após a sua morte, em abril de 2012, e traz uma seleção de textos publicados anteriormente com suas principais reflexões teóricas e metodológicas sobre a antropologia urbana. Como ex-aluna e amiga, vejo nesta coletânea uma exposição valiosa de suas ideias e questionamentos, que revela a importância deste que foi um dos antropólogos brasileiros mais influentes que tivemos.
Há três temas mais abrangentes – a pesquisa em meio urbano, o indivíduo e suas vivências nas sociedades complexas e a questão dos comportamentos ‘desviantes’ – presentes em vários ensaios, que justificam tratá-los em conjunto. O primeiro deles é abordado a partir de uma indagação que Gilberto fazia constantemente: o que significa fazer pesquisa em uma grande cidade e principalmente na sua própria cidade? Quais os desafios e problemas do estudo do meio urbano, enfrentados no caso de uma pesquisa antropológica, na qual se espera que o pesquisador conviva mais intensamente com o grupo estudado?
Longe de imaginar qualquer possibilidade de imparcialidade, ele defendia que a própria posição social do pesquisador em sua sociedade interferia no modo de ver o mapa social da cidade e, por sua vez, na relação com os diversos grupos com os quais tem contato em graus variados. Daí, portanto, a necessidade de estranhar o familiar, de compreender esse mapa social não apenas como um viés presente na pesquisa de campo, mas também como mais um elemento a ser analisado. Pois a relação do pesquisador com os grupos de pesquisa seria mais um exemplo de como se dão as relações sociais em uma grande cidade, nas sociedades complexas.
Para pensar essas relações – segundo tema tratado no livro –, Gilberto recorreu a um conjunto de conceitos, cujas origens vinham tanto da sociologia de Georg Simmel (1858-1918) e dos interacionistas simbólicos americanos quanto da fenomenologia de Alfred Schutz (1899-1959), entendidos à luz de suas preocupações com a sociedade brasileira.
A ideia de complexidade referia-se tanto ao contraste com as sociedades tradicionalmente estudadas pelos antropólogos, relativamente isoladas e homogêneas, quanto à heterogeneidade resultante da divisão social de trabalho e da estratificação social, particularmente acentuada no meio urbano. Nas sociedades complexas, afirmava ele, coexistem diversos grupos sociais, com estilos de vida, visões de mundo e códigos distintos – regras de comportamento e formas de linguagem específicas, que muitas vezes apresentam fronteiras relativamente bem demarcadas.
Por isso, não faria sentido falar em uma cultura comum a todos, pressupondo aí o compartilhamento de valores, noções e comportamentos por toda uma sociedade. Antes, caberia ao antropólogo perguntar: “O que pode ser comunicado? Como as experiências podem ser partilhadas? Como a realidade pode ser negociada e quais são os limites para a manipulação de símbolos?”.
Com essas indagações, o autor revelava um interesse fundamental e constante pelos vários aspectos da relação do indivíduo com a sociedade. Primeiramente, temos o desempenho de diversos papéis sociais, que implica muitas vezes circular por grupos sociais com códigos e visões de mundo específicos. Essa circulação não é livre; ao contrário, está circunscrita ao campo de possibilidades colocado pela trajetória familiar e social do indivíduo. Há espaço para escolha individual, mas esta é sempre limitada por esta inserção social. Esse trânsito por vários mundos não significa que o indivíduo domine igualmente todos os códigos e estilos de vida com os quais tem contato. Ao contrário, ele tem graus variados de familiaridade e adesão a eles. Em alguns casos, quando o indivíduo lida bem com vários códigos distintos, pode exercer até a condição de mediador entre mundos diferentes.
Heterogeneidade social e cultural
O que significa subjetivamente vivenciar essa heterogeneidade social e cultural? Gilberto dedicou-se a pensar a tensão entre a experiência de uma vida fragmentada por vários papéis e mundos sociais e a unidade propiciada tanto por unidades englobantes, como família e instituições religiosas, quanto pelo processo de construção de identidades e projetos. Neste último tópico, a ação da memória seria fundamental para oferecer uma visão retrospectiva da trajetória e da biografia e selecionar elementos do passado que servirão de matéria-prima para a elaboração dos projetos futuros.
Em suas palavras, “o projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade”. Com forte carga afetiva, o projeto seria construído também a partir do repertório de temas, valores e códigos oferecido pelo campo de possibilidades no qual se insere o indivíduo. A memória e o projeto são centrais então para entender como o indivíduo ordena sua trajetória em um mundo diverso e fragmentado.
Nas sociedades ocidentais modernas, destaca o autor, a construção de um projeto e de uma biografia singulares torna-se valor importante. Na sociedade brasileira, os segmentos médios urbanos – foco de suas pesquisas – seriam aqueles cujos códigos e visões de mundo mais acentuariam a individualização do sujeito. Sem perder de vista o pertencimento do sujeito a unidades mais englobantes, nesses segmentos valoriza-se sua singularidade, com a acentuação de uma trajetória e projetos particulares.
Entretanto, o destacamento do indivíduo dessas instituições mais amplas pode ser visto às vezes como problemático e resultar em acusações, como aconteceu com os jovens de camadas médias que usavam drogas, estudados por Gilberto na década de 1970, muitas vezes tratados por sua família como doentes.
Aqui, confrontamo-nos com a questão do desvio, terceiro tema da coletânea. Na época de sua pesquisa, os comportamentos desviantes eram explicados ora como problemas de uma sociedade disfuncional, em crise, ora como características psicológicas inatas ao indivíduo. Partindo de uma perspectiva interacionista, Gilberto propôs que o desvio fosse entendido a partir da relação entre pessoas que acusam outros por estarem quebrando valores e limites de uma dada situação sociocultural. Nesse sentido, o ‘desviante’ seria aquele que faria uma ‘leitura’ divergente, sozinho ou em grupo, de certa realidade, não sendo ‘desviante’ diante de todos nem em todos os momentos.
Este é um breve panorama das questões e ideias tratadas por Gilberto Velho ao longo de sua carreira, bem ilustradas neste livro, que traz também dados de pesquisas realizadas principalmente na década de 1970 – a vida em um prédio em Copacabana, a relação entre jovens que usam drogas e suas famílias, a trajetória de uma imigrante açoriana nos Estados Unidos. Além disso, o livro ganha uma coloração especial com a entrevista feita com ele em 2001 e a apresentação escrita pelos organizadores.
Assim, entendemos como Gilberto construiu sua própria biografia e trajetória intelectual e institucional, com elementos destacados por ele como importantes – a figura do pai militar, o estudo no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a graduação em ciências sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) durante a ditadura, os diversos períodos nos Estados Unidos, o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), a dedicação ao ensino e pesquisa no Museu Nacional da UFRJ, as muitas referências de pensadores e romancistas brasileiros, americanos e europeus, antigos e contemporâneos, que influenciaram sua obra. Incorporando fontes do seu arquivo pessoal na apresentação, os organizadores traçam um retrato cuidadoso e afetuoso de quem ele foi e como podemos entender seu pensamento que ousadamente reuniu referências de várias origens e produziu uma síntese muito própria. A coletânea vem a ser, portanto, uma contribuição especial para que sua obra permaneça influenciando as reflexões sobre a vida urbana.
Hermano Vianna, Karina Kuschnir e Celso Castro (seleção e apresentação)
Rio de Janeiro, Zahar
200 páginas – R$39,90
Claudia Barcellos Rezende
Professora do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro