Para a esmagadora maioria das pessoas, chocolate é irresistível pelo sabor, pela textura e pelas sensações que causa. Para o químico brasileiro Josélio Vieira, esse alimento é fascinante por um motivo a mais: os mistérios físico-químicos.
Depois de 11 anos desenvolvendo, no Brasil e na Inglaterra, produtos agroquímicos, Vieira foi trabalhar, em 2001, no Centro de Tecnologia de Sorvetes da Nestlé, na França. Seis anos depois, alguns diriam que seu cargo ficou ainda mais ‘tentador’: Vieira foi transferido para York (Reino Unido), onde a empresa tem seu Centro de Tecnologia de Chocolate. Uma de suas tarefas diárias: degustar várias amostras do produto.
Com um doutorado em físico-química pela Universidade de Oxford (Reino Unido), Vieira é um cientista na indústria. Tem 11 patentes e 25 artigos científicos publicados na área de ciência e tecnologia de alimentos. Com muita repercussão na mídia (ver CH 326, p. 12), a mais recente de suas publicações (Applied Materials & Interfaces, v.7, n. 18, pp. 9929-9936, 2015) traz os resultados de um experimento – feito com a ajuda de uma fonte poderosa de raios X – para entender um problema que causa milhões de dólares de prejuízo anual à indústria: por que o chocolate fica esbranquiçado. A seguir, os melhores momentos da entrevista exclusiva à CH.
CH On-line: Para muitos, o senhor tem ‘o’ melhor emprego do mundo. O senhor come chocolate todos os dias?
Josélio Vieira: Além de ser o melhor emprego do mundo, trabalhar com chocolate é fascinante do ponto de vista científico. As tecnologias estão cada vez mais sofisticadas para atender às constantes mudanças de preferências do consumidor, ao crescente consumo de chocolate – principalmente, em mercados emergentes – e à necessidade tanto de se manter à frente em um mercado extremamente competitivo quanto de desenvolver produtos e métodos de produção mais sustentáveis. Não digo que como chocolates todos os dias, mas muitas das reuniões envolvem degustar várias amostras. Na pesquisa de chocolate, uma lei fundamental diz que a ciência pode ser brilhante ou a tecnologia sofisticada, mas o chocolate, no final, tem que se manter delicioso.
Como é seu dia a dia?
Sou responsável pela busca de novas tecnologias e por fornecer direcionamento e conselhos técnicos a projetos de desenvolvimento de produtos. Meu dia a dia é repleto de reuniões com técnicos internos e externos, para revisão de projetos, discussões sobre proteção de propriedade intelectual e apresentações, para alinhar os projetos com a necessidade do negócio. Há uma grande necessidade de colaborações externas, e uma parte significativa de meu dia é dedicada à busca de competências externas – inclusive, científicas – para o desenvolvimento de novas tecnologias ou a aceleração do desenvolvimento. O segredo de estar à frente da concorrência está na combinação de inovação tecnológica e sua industrialização rápida.
O senhor fez seu doutorado em físico-química na Universidade de Oxford. O tema tinha a ver com chocolate?
À época, eu não trabalhava com chocolate. Porém, o tema da minha tese – adsorção de tensoativos [substâncias que facilitam a mistura de dois líquidos imiscíveis] – é um fenômeno relevante à fabricação de chocolate, pois este é uma suspensão de partículas sólidas de açúcar, leite e cacau, dispersas em manteiga de cacau. No chocolate, para auxiliar a dispersão dessas partículas sólidas, usa-se lecitina como tensoativo.
Pesquisa acadêmica e industrial são muito diferentes?
Sim, principalmente na indústria dos chamados produtos de alto consumo, na qual o pesquisador lida com um produto complexo em termos de tecnologia e que, pela natureza da indústria, requer um processo rápido de desenvolvimento e comercialização. Porém, há espaço para a pesquisa acadêmica na indústria. Muitos desafios pelos quais a indústria alimentícia está passando exigem tecnologias novas e inovadoras cujo conhecimento fundamental ainda não está totalmente explorado. É aí que a pesquisa acadêmica pode ser integrada.
Em que tema o senhor trabalha neste momento?
Minha área de interesse é aplicação da ciência de coloides [suspensões de partículas microscópicas, como as proteínas no leite] em desenvolvimento de formulações de produtos de chocolate. Mas, neste momento, uma das áreas de pesquisa em que atuo é o desenvolvimento de processos mais sustentáveis. A fabricação de chocolate é essencialmente a mesma há mais de 130 anos. Portanto, há uma necessidade grande de processos mais eficientes e que consumam menos energia e água.
É possível dizer quanto a empresa gasta anualmente em pesquisa? Qual o mercado mundial para o chocolate?
A Nestlé tem uma capacidade de P&D [pesquisa e desenvolvimento] inigualável, e ela está direcionada ao desenvolvimento de inovações voltadas ao consumidor. Sua extensa rede de centros de P&D no mundo compreende mais de 5 mil pessoas e um orçamento anual de mais de 1,7 bilhão de francos suíços [cerca de R$ 5 bilhões], para atender às constantes mudanças das necessidades do consumidor e do negócio. O mercado mundial de chocolate está em torno de US$ 100 bilhões [cerca de R$ 310 bilhões], e o consumo global é de 7,2 milhões de toneladas. Em termos de consumo per capita, a Suíça está em primeiro lugar, com uma média de 9,2 kg/ano. No Brasil, essa cifra é de 1,6 kg/ano.
Vindo da América Central, o chocolate chegou à Europa há cerca de cinco séculos. Do ponto de vista físico-químico, há ainda alguma grande questão que desafia os pesquisadores da área?
A ciência do chocolate é bem complexa, e vários fenômenos químicos e físicos ainda não estão bem explicados ou entendidos. Por exemplo, o fato de o chocolate desenvolver manchas brancas depois de exposto ao calor – o que, na indústria, denominamos bloom. Muitos consumidores pensam que é mofo, o que não é verdade. Trata-se de uma fração da gordura de cacau que migra para a superfície e aí se recristaliza. Portanto, não há perigo à saúde se ingerido.
Cássio Leite Vieira
Instituto Ciência Hoje/ RJ