Quando o descendente de escravos Aloysio Silva tinha 11 anos, vivia no orfanato para meninos Educandário Romão de Mattos Duarte, no Rio de Janeiro. Em 1932, sua infância, e a de outros garotos da instituição, tomou um rumo diferente. Nesse ano, foi ao orfanato o fazendeiro Oswaldo Rocha Miranda com seu motorista. No pátio, todos os órfãos estavam reunidos quando o empregado começou a jogar balas no chão. Aloysio foi um dos que pegaram mais doces.
O que podia parecer motivo de alegria, no entanto, se mostrou um golpe do destino. Os meninos mais espertos, que juntaram mais balas, foram escolhidos e levados pelo fazendeiro. “Ele chegou e mandou encostar nós num canto lá, então separou nós como separa boi na mangueira”, lembra. “Da minha turma, ele tirou 20 e desses 20 tirou 10, de onde veio nós 10; ele mandou a superiora botar nós num lugar lá pra esquecer dos outros.”
A partir desse dia, os meninos do educandário não mais foram chamados por seus nomes, receberam números de identificação e passaram a viver e realizar trabalhos forçados em fazendas no interior de São Paulo da família Rocha Miranda, aristocratas que tinham aproximações com o nazismo e o integralismo – dois movimentos políticos de extrema direita, distintos, mas igualmente marcados pelas ideias eugenistas. Aloysio e seus colegas foram apenas os primeiros de quase 50 órfãos, a maioria negros, levados à força.
A descoberta dessa história ocorreu durante pesquisa feita pelo historiador Sidney Aguilar como parte de seu doutorado na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aguilar dava aulas sobre a Segunda Guerra Mundial em um colégio de ensino médio quando uma aluna disse ter visto esculpida em tijolos de uma antiga fazenda paulista de Campina do Monte Alegre a suástica, insígnia nazista. O professor resolveu visitar a região e lá escutou a história dos meninos, entrevistando sobreviventes como Aloysio Silva. “O que me chamou a atenção não foram tanto as suásticas, mas os boatos que comecei a ouvir sobre esses órfãos e a forte presença integralista no local”, diz.
O pesquisador conta que alguns integrantes da família Rocha Miranda ocupavam a ‘Câmara dos Quarenta’, um dos órgãos superiores da Ação Integralista Brasileira (AIB). Um, Renato, era amigo próximo do líder do movimento, Plínio Salgado. Outros dois irmãos, Sérgio e Otávio, mantinham relação direta com membros do partido nazista. Sérgio era o dono da fazenda Cruzeiro do Sul, que exibia suásticas nos tijolos e no gado. Já Otávio vendeu uma de suas fazendas ao criminoso de guerra e ex-ministro do Estado nazista Alfried Krupp, que lá se instalou com mulher e filho depois do conflito mundial.
As aproximações políticas da família que ganhou a tutela dos órfãos chamaram a atenção de Aguilar. “Em meio a essas relações familiares e empresariais entre adeptos do integralismo e do nazismo, havia um grupo de 50 crianças submetidas a toda sorte de violência”, diz. “Depois de estudar documentos da época e das fazendas da família, o que descobri foi um projeto eugenista.”
De acordo com o pesquisador, os irmãos Rocha Miranda tinham um propósito ideológico ao retirar esses órfãos e levá-los para suas fazendas: queriam deixar a então capital livre de crianças negras e pobres. “A eugenia, pseudociência que buscava ‘a raça e o indivíduo perfeitos’, era muito forte no imaginário popular da época e, nesse caso, se deu por meio de práticas de afirmação de certos grupos e segregação de outros”, explica. “Nessa lógica, a transferência de crianças negras e pobres do Rio de Janeiro para o interior de São Paulo foi uma ação eugênica, uma vez que incidiu sobre órfãos (e para os eugenistas era muito importante saber a origem do indivíduo) e negros, considerados de raça inferior.”
Ao examinar documentos da época, Aguilar verificou que as transferências dos órfãos contavam com a concordância da Igreja, que mantinha o educandário, e do Estado, na figura do juiz que autorizou o processo, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, autor do primeiro Código do Menor do país. A tutela dos meninos era passada à família Rocha Miranda com a justificativa de que se tratava de ação filantrópica e educativa.
Mas, segundo o historiador, ao chegar às fazendas, os órfãos tinham apenas um ano de escola com uma professora contratada. O restante de suas infâncias era gasto com trabalhos no campo. “Eles eram obrigados a acordar às cinco horas da manhã e tomar banho gelado em uma piscina coletiva mesmo no inverno”, conta Aguilar, com base nas entrevistas com sobreviventes e seus parentes. “Eles contam que faziam fila para receber a enxada e não podiam brincar sequer nas horas de descanso. Muitos morreram cedo, alguns fugiram e a maioria não se casou nem teve filhos.”
Momento oportuno
Nazismo e eugenia no Brasil são temas que despertam estranheza e curiosidade. Mas ambos tiveram forte presença por aqui. O Brasil chegou a ter o maior número de afiliados ao partido nazista fora da Alemanha. Já a eugenia tinha um espectro político amplo, abrangendo as ideologias nazista e integralista e até movimentos liberais e de esquerda.
Segundo o historiador Luis Edmundo de Souza Moraes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o pensamento eugenista era comum em todo o mundo no início do século 20. “Intelectuais alemães, norte-americanos e também brasileiros muito legitimados divulgavam ideias eugenistas. Os Estados Unidos tinham leis de eugenia desde 1907 e vários países europeus tiveram leis de esterilização de pessoas. A eugenia foi, no século 20, um fenômeno bem disseminado, que obviamente teve seus expoentes no Brasil.”
As transferências de meninos órfãos do Rio de Janeiro para as fazendas da família Rocha Miranda terminaram, coincidentemente ou não, nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, quando os movimentos de extrema direita enfraqueceram. Em 1938, foi proibida a existência de partido político estrangeiro no Brasil e, em 1942, o governo de Getúlio Vargas declarou guerra à Alemanha nazista. Aguilar conta que nesse momento a família Rocha Miranda mudou seu posicionamento político frente à sociedade e chegou a oferecer um dos meninos sob sua tutela para combater os alemães na guerra.
“Há duas versões para explicar o fim das transferências”, conta o historiador. “Uma delas é que Oswaldo Rocha Miranda, tutor oficial das crianças, ficou muito doente e transferiu os negócios para seu sobrinho, que liberou os meninos, mesmo os que ainda não tinham completado a maioridade. Mas tem outra possibilidade que é a influência do momento histórico, pois entre 1942 e 1943 as posições políticas colocavam integralistas e nazistas em uma situação muito delicada.”
O caso dos meninos do Educandário Romão de Mattos Duarte foi o único desse tipo que Aguilar encontrou durante sua pesquisa. Mas o historiador não descarta a possibilidade de que histórias semelhantes tenham acontecido em outras fazendas brasileiras no início do século 20. “Encontrei nas documentações eugenistas da época a ideia de que o trabalho deveria fazer parte da educação e formação das crianças pobres”, diz. “Esse discurso do trabalho como educação se transformava em uma forma de exploração sistemática do trabalho infantil pelas elites. É plausível que outros casos tenham ocorrido e sinceramente espero que esse trabalho sirva de motivação para mais pesquisas.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 300 (janeiro e fevereiro de 2013)