Internação involuntária: implicações éticas, clínicas e legais

Não se pode banalizar a internação psiquiátrica realizada contra a vontade do paciente apenas usando o argumento da gravidade da situação clínica e social que afeta pessoas que consomem a droga ilícita conhecida como crack.

O tratamento obrigatório, isto é, imposto ao paciente, é uma situação-limite para os profissionais da saúde. Os médicos, de acordo com seu código de ética, só estão autorizados a impor uma conduta terapêutica contra a vontade do paciente em casos explícitos de “iminente risco de vida”. Portanto, é uma medida heroica, cuja justificativa ética sustenta-se na defesa concreta e objetiva da vida em situação de risco imediato.

Os médicos só estão autorizados a impor uma conduta terapêutica contra a vontade do paciente em casos explícitos de “iminente risco de vida”

Vem-me à lembrança um caso concreto, que acompanhei como psiquiatra de hospital geral: um paciente com anemia aguda recusou, por convicções religiosas, a transfusão de sangue. Por isso, e porque não ficou claramente estabelecido ser esta a única possibilidade de salvar o paciente na situação dramática do limite entre a vida e a morte, o procedimento não pôde ser realizado.

Foi necessário recorrer a uma terceira instituição, a Justiça, o que exige tempo. Muitas horas depois, obteve-se uma decisão judicial. Essa aparente dificuldade é uma imposição ética e legal. Completo a história: um novo exame revelou uma melhora importante do quadro de anemia, e a transfusão – já autorizada pela Justiça – não precisou ser realizada, o que enfim foi a melhor solução terapêutica. Esse exemplo mostra toda a complexidade do tratamento involuntário.

O Estado – seja por meio de médicos, juízes, policiais ou assistentes sociais – não dispõe de autorização sem limites para impor um tratamento e privar de liberdade os consumidores de drogas ilícitas. Os limites são de duas naturezas. Jurídica, pois no estado democrático de direito a liberdade é um bem inalienável e a democracia consiste justamente em estabelecer os limites da intervenção do Estado, com base na Constituição e nas leis. E científica, já que numerosos estudos sobre o complexo problema do tratamento obrigatório para dependentes de drogas demonstram a baixa efetividade dos métodos coercitivos, se comparados a uma abordagem mais compreensiva, clínica, que leve em conta a vulnerabilidade social e os fatores culturais envolvidos.

Essa é certamente uma grande polêmica científica e ética, e avançaremos muito em nosso país se aceitarmos debater com profundidade as limitações do tratamento obrigatório. Podemos começar perguntando: quais têm sido os resultados clínicos reais para pacientes submetidos à política de ‘recolhimento compulsório de drogados’, posta em marcha no Rio de Janeiro e sustentada em determinação interna de órgão da administração municipal (Resolução 20, de 27 de maio de 2011, da Secretaria Municipal de Assistência Social)? Como têm funcionado os abrigos para onde são encaminhados os ‘drogados’? Que resultados vêm sendo efetivamente alcançados pelas chamadas ‘comunidades terapêuticas’?

Usuário de drogas
Estudos mostram que o tratamento obrigatório para dependentes de drogas é menos efetivo que a adoção de uma abordagem clínica mais compreensiva. (foto: Wikimedia Commons/ Psychonaught)

O Brasil tem uma lei para tratar desse tema: a Lei 10.216, de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Ela define que a internação psiquiátrica pode ser: voluntária, involuntária (quando o paciente se opõe à medida, mas há razões de risco e urgência para realizá-la) e compulsória (definida pela Justiça, nos casos já previstos em lei, como a medida de segurança definida no Código Penal).

Instituída sob as premissas éticas dos direitos humanos e da humanização e modernização do atendimento psiquiátrico, a lei estabelece que não pode haver incompatibilidade entre o tratamento psiquiátrico e os direitos humanos. Não é um desafio simples, e não se resolve com palavras, mas com decisões eticamente sustentadas, principiando pela aceitação da complexidade e delicadeza do tema.

A internação involuntária deve ser realizada apenas quando existe situação de risco iminente para o paciente ou para terceiros. Sua regulamentação está presente nas legislações de diversos países, e consta da importante ‘Declaração de Princípios das Nações Unidas sobre a Proteção de Pessoas com Enfermidade Mental e a Melhoria da Assistência em Saúde Mental’, de dezembro de 1991. Esse tipo de internação só pode ocorrer mediante determinação médica, mas isso não basta: precisa ser comunicada ao Ministério Público, que a submeterá a um órgão de revisão (uma comissão multidisciplinar), para assegurar ao paciente o direito ao contraditório e para verificar a real necessidade da medida.

O que se observa no país é uma extensa e avassaladora judicialização das internações psiquiátricas, sob a pressão da gravidade dos casos associados ao consumo de drogas

O que se deseja, com essas ressalvas, é garantir ao paciente, nos casos extremos em que a internação involuntária for necessária, o direito de revisão e acompanhamento. Quando bem indicada, uma internação involuntária frequentemente passa a ser aceita pelo paciente e torna-se voluntária – sempre com a participação da comissão revisora. É preciso aperfeiçoar esse mecanismo em nosso país, porque ele não apenas protege os direitos do paciente, mas impõe uma qualificação permanente dos serviços públicos de saúde mental.

A internação judicial ou compulsória deveria limitar-se aos casos previstos na chamada ‘medida de segurança’, isto é, quando ocorrem delitos cometidos por uma pessoa com doença mental. Entretanto, o que se observa no país é uma extensa e avassaladora judicialização das internações psiquiátricas, sob a pressão da gravidade dos casos associados ao consumo de drogas. A saúde pública, em parceria com a assistência social e outras políticas públicas, não deve se omitir nem se mostrar ambígua diante dessa visão coercitiva e judicializante do complexo problema das drogas, e precisa apresentar soluções concretas.

Essas soluções já estão enunciadas: centros de atenção psicossocial (com funcionamento de 24 horas), internações em serviços capacitados para esse atendimento em hospitais gerais, consultórios de rua, estratégias de redução de danos, casas de acolhimento transitório, iniciativas de inclusão social e diminuição da vulnerabilidade social e outras. É necessário reconstruir um diálogo, onde o tratamento dos usuários de drogas e os direitos humanos não se coloquem em campos opostos.

Você leu um dos textos da seção ‘Polêmica’ da CH 295. Leia também o artigo do psiquiatra Antônio Geraldo da Silva sobre o mesmo tema. Clique no ícone a seguir para baixar a versão em

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Pedro Gabriel Delgado
Departamento de Psiquiatria
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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