Nestas poucas décadas em que o Brasil passou de ‘eminentemente agrário’ para ‘sexta economia do mundo’, seu sistema urbano deu um salto demográfico monumental: de 12 milhões para 175 milhões de pessoas. Qual o desenho que o país traçou para que suas cidades pudessem corresponder a tal desafio?

Em aula magna que proferiu para o colegiado da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, em 1968, pouco antes de ser cassado pela ditadura, o arquiteto João Vilanova Artigas (1915-1985) lembrou a correlação semântica entre ‘desenho’, ‘desígnio’ e ‘projeto’, ou seja, a “intenção de fazer algo no futuro”. Artigas, com isso, sublinhou que um projeto (ou a ausência dele) tem fundamentação política.

Que política orientou o crescimento urbano brasileiro?

Assim, a resposta à pergunta inicial precisa ser precedida por outra: que política orientou o crescimento urbano brasileiro?

Todos reconhecemos os esforços feitos para o desenvolvimento nacional na promoção da industrialização, do agronegócio, do sistema financeiro, da energia e das comunicações, entre outros setores. Porém, no que se refere ao urbano, os esforços foram centrífugos – no sentido de as cidades subsidiarem aquelas outras políticas.

Nesse período em que a urbanização explodiu, tratou-se, no caso da habitação, de desestimular a produção de moradia, para venda ou para renda, para que os capitais aplicáveis nessa área pudessem se destinar ao incipiente setor industrial. No transporte urbano, desconstruiu-se o modo sobre trilhos em benefício da indústria automobilística.

Estimulou-se a emigração do campo, oferecendo mão de obra barata à indústria e inchando as cidades. Sua expansão, diante do fluxo excessivo, foi promovida sem saneamento, sem transporte, sem moradia e sem regulação urbanística: um faroeste doméstico, que caracteriza boa parte das grandes cidades.

Favela da Rocinha
Vista da favela da Rocinha e do bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro. A expansão das grandes cidades brasileiras foi promovida sem saneamento, sem moradia e sem regulação urbanística. (foto: Luigi Zarrillo/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

É possível avaliar que o Brasil consolidou seu crescimento econômico em detrimento do sistema urbano. Desse modo, nossas cidades evidenciam um importante passivo socioambiental que se coloca como desafio fundamental a ser enfrentado nos próximos anos. Não obstante, e paradoxalmente, elas também constituem um patrimônio sociocultural e espacial de enorme diversidade e riqueza.

Neste século 21, o desenvolvimento se dará cada vez mais a partir do conhecimento, e este é produzido e difundido na cidade. Em especial, aquela em que as condições de vida urbana garantam bom acesso à educação superior, aos serviços avançados de saúde, aos serviços públicos, às atividades culturais, ao lazer. Enfim, o conhecimento e a criatividade são estimulados pela interação social, qualidade essencial da cidade.

Nossas cidades não podem continuar a ser uma consequência das circunstâncias: devem ser promovidas segundo nosso desejo

Por tal razão, comum às grandes economias, mas igualmente por exigências da evolução de nossa democracia, o Brasil precisará dar atenção específica a seu sistema urbano. O país precisará estruturar políticas orientadas para suas cidades, contemplando suas principais carências e fortalecendo suas grandes virtudes.

Nossas cidades não podem continuar a ser uma consequência das circunstâncias: devem ser promovidas segundo nosso desejo. Temos hoje duas dezenas de metrópoles, sendo duas megacidades, e o desafio de projetá-las é enorme. Será, certamente, tarefa estimuladora para arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, cientistas sociais e demais profissionais afins dizer qual a intenção que se tem para o futuro de cada uma delas. Mas, como decisão política, será sobretudo tarefa para o conjunto da sociedade.

Como alcançar a equidade urbana, indispensável exigência democrática? O desenho da cidade brasileira é um dos grandes desafios estratégicos para o país neste início de século.

Sérgio Magalhães
Programa de Pós-graduação em Urbanismo (Prourb)
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Texto originalmente publicado na CH 295 (agosto de 2012).

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