Uma pesquisa sobre os livros mais vendidos de todos os tempos revela unanimidade apenas nos dois primeiros lugares. Na cabeça da lista vem a Bíblia e depois o livro de citações do ex-dirigente chinês e teórico marxista Mao Tse-Tung (1893-1976). Este só atingiu o segundo lugar porque, após a revolução cultural na China, o país mais populoso do mundo, todos os cidadãos eram obrigados a ter sua cópia. Os títulos que se seguem a estes variam, dependendo das fontes consultadas. Mesmo que as listas sejam estendidas aos 100 livros mais vendidos, muitas obras importantíssimas ficam de fora.
Um exemplo notável é a contribuição seminal de Charles Darwin (1809-1882), A origem das espécies . Ao ser publicado, em 1859, o livro foi um campeão de vendas, embora as tiragens iniciais tenham sido pequenas para os padrões atuais. No entanto, diferentemente da Bíblia , após o sucesso inicial, gradualmente o interesse do público diminuiu. Hoje, mesmo entre estudantes de biologia de graduação e pós-graduação, e entre seus professores, são poucos os que já leram A origem das espécies . Isso não os impede, entretanto, de citar Darwin com a autoridade de quem conhece sua obra intimamente. Nesse aspecto, guardadas as devidas proporções, A origem , embora menos lida, talvez seja quase tão citada quanto a Bíblia .
Por que acontece esse fenômeno? Seria o caso de a hipótese de Darwin conter falhas? De não se manter robusta diante de novas evidências? Aparentemente, não. Apesar das críticas apaixonadas, das variadas interpretações e dos apêndices acrescentados nos últimos 145 anos, A origem não perdeu nada em importância e vigor e ainda pode ser descrita como a hipótese mais central e unificadora da biologia. Em outras palavras, não existe uma alternativa séria para o modelo de Darwin e, portanto, este permanece incólume e promete ser longevo. O texto é árido ou obscuro? Mais uma vez, não. A o rigem das espécies foi escrita tendo em mente o público geral. Na verdade, o estilo é quase coloquial, sem lançar mão do jargão científico, e a leitura independe de conhecimento prévio especializado.
Provavelmente aconteceu com Darwin o mesmo que ocorreu com Einstein e outros gigantes. O autor e as circunstâncias históricas passaram a ser mais atraentes que a obra propriamente dita. De fato, as biografias de Darwin têm hoje muito mais destaque nas livrarias que o livro que lhe deu fama. Outros personagens envolvidos na trama de A origem também são campeões de vendas. Uma biografia do capitão Robert Fitzroy (1805-1865), o anfitrião de Darwin na famosa viagem de volta ao mundo a bordo do Beagle, é também bastante popular, principalmente em função de sua personalidade peculiar e de seu antagonismo às idéias blasfemas de Darwin. Por que, então, o desterro de A origem ?
É possível que essa rejeição não seja dirigida especificamente contra Darwin. Como outros pensadores influentes, ele parece ter sido vítima de um fenômeno atual e geral que resulta de duas tendências principais: as pessoas lêem menos e, quando o fazem, buscam leituras mais leves, digestivas, que não exijam um trabalho intelectual mais apurado. Basta ver o enorme sucesso de livros pseudocientíficos, em especial os de ‘auto-ajuda’.
Outros fatores também influem. Nos tempos mais recentes, a internet introduziu uma forte competição à leitura tradicional, com seu enorme e acessível poder informacional. É muito mais fácil, hoje, obter informações instantâneas sobre qualquer assunto do que realizar buscas em material impresso – em bibliotecas, por exemplo. A internet poderia significar um grande avanço educativo, se não trouxesse uma contrapartida preocupante. Com ela surgiu também a fobia à prolixidade. Quem se informa eletronicamente exige textos necessariamente curtos e objetivos. O estilo de Darwin e de outros escritores de sua época certamente provocaria surtos de impaciência nos leitores de hoje, sobretudo aqueles mais jovens. O resultado, como se vê, é uma ilusão de conhecimento. É a cultura baseada na citação das citações.
Em tempo: quantos, entre os leitores da CH , já leram A origem das espécies ?
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro.