Ciência Hoje/RJ

Acaba de ser lançado levantamento tido como o mais amplo estudo da história para descrever as causas e a distribuição de doenças, traumas e fatores de risco do mundo. Isso (obviamente) é bom. E isso se mostrou (inesperadamente) ruim.

O chamado GBD 2010 (que poderia ser traduzido, do inglês, como Estudo do Ônus Global das Doenças) chegou causando impacto. Seus defensores alegam, com entusiasmo rotundo, que não há nada semelhante – nem de perto – em abrangência e profundidade na área de epidemiologia. Já os que se sentiram desconfortáveis com o oceano de dados apresentados alegam que os autores não primaram pela transparência. Pior: os números do estudo vão de encontro a outros – bem aceitos –, vindos, por exemplo, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Há, certamente, um atrito político entre as partes. E isso era de se esperar, diante de dados tão amplos. Parte da polêmica está relatada em reportagem de Jon Cohen. A controvérsia parece ter começado quando o IHME (sigla, em inglês, para algo como Instituto para a Avaliação e Métrica da Saúde), que centraliza os trabalhos do GBD 2010, resolveu adiantar fração dos resultados. E estes contrastavam (muito) com os números da OMS.

Lançado o estudo, o relacionamento entre o IHME e a OMS desandou com mais intensidade. Esta última soltou nota aconselhando seus membros a não se envolverem com o GBD 2010. A troca de acusações levou o líder dos trabalhos, Christopher Murray, a dizer, à Science, que “burocratas não fazem inovação na área de estatística. Pesquisadores fazem”.

Os críticos dizem que os métodos do IHME, ligado à Universidade de Washington (EUA), são obscuros e complexos. Mesmo colaboradores chegaram a discordar dos números finais. Agora, as farpas parecem estar perdendo as pontas: IHME e OMS resolveram marcar reunião conjunta, prevista para ocorrer este mês, para discutir consensos e discordâncias. Esse tipo de radiografia da saúde planetária teve origem em 1990.

Os números e dados do estudo são colossais: 291 doenças e traumas; 67 fatores de riscos, 1.160 sequelas (não fatais)

O GBD 2010 recebeu adjetivos elogiosos, como sobre-humano, magistral, inigualável, intenso, desafiador etc. Uma das razões: os números e dados do estudo são colossais: 291 doenças e traumas; 67 fatores de riscos, 1.160 sequelas (não fatais). Apontou que, desse total, cerca de 50 ‘vilões’ respondem por quase 80% dos problemas mundiais de saúde. O estudo está dividido em 21 regiões globais, 20 faixas etárias, cobrindo 187 países (inclusive o Brasil).

Epítetos não tão elegantes também foram lançados contra o estudo. Dois deles: impenetrável e obscuro. Deveras. O tratamento estatístico é tão complexo que mesmo especialistas dizem não entender como brotaram os resultados. O GBD 2010 chegou a ser denominado caixa-preta. Esmiuçando: algo que não se pode (re)analisar de forma independente.

O GBD 2010 inclui oito artigos. Ocupam quase 200 páginas da revista, que foi obrigada a imprimir a maior edição de sua história. Número de instituições participantes: 302. Pesquisadores: 486, de 50 países. Os autores analisaram e resumiram número gigantesco de dados e trabalhos (publicados ou não). Boa fatia do financiamento para essa tarefa hercúlea veio da Fundação Bill e Melinda Gates, que despejou 105 milhões de dólares (cerca de R$ 210 milhões) na empreitada.

Cenários e números

Primeiramente, o grosso do grosso: segundo o GBD 2010, morrem, por ano, 52 milhões de pessoas no mundo – bem, a OMS diz que são 56 milhões. Outros dados planetários: diminuiu a morte de crianças com menos de cinco anos de idade; aumentaram os casos de transtornos mentais e de dor nas costas; vêm diminuindo os casos de malária e diarreia; caíram drasticamente mortes por tuberculose, mas aumentou o número de casos.

Segundo o GBD 2010, a Aids, como causa de morte, passou de 35º lugar (1990) para 6º (2010). Houve aumento de 44%, de 1970 para cá, no número de mortes de adultos entre 15 e 49 anos, sendo culpados, em parte, a violência e a Aids. Obesidade e diabetes também vêm crescendo – décadas atrás, havia pouca comida saudável; agora, há comida em excesso, mas ela não é saudável.

Em 1990, os três principais problemas de saúde no mundo eram, na ordem, infecção respiratória, diarreia e nascimento prematuro. Em 2010, eles são doenças cardíacas, infecção respiratória e derrame. Nestes 20 anos, saíram da tabela dos 12 maiores problemas mundiais de saúde a tuberculose e a desnutrição, e entraram para a lista o HIV e os transtornos da depressão.

Em relação aos 12 maiores riscos – ou seja, fatores que causaram as maiores ‘perdas de saúde’ e não necessariamente o maior número de mortes –, em 1990, as três primeiras colocações eram, respectivamente, subnutrição infantil, poluição doméstica do ar (por conta das cozinhas) e tabagismo. Em 2010, os três vilões: pressão alta, tabagismo e alcoolismo. Saíram dessa lista: falta de amamentação e alto índice de massa corporal (presentes em 1990) e entraram (na de 2010) sedentarismo e – dado que causa espécie – baixo consumo de sementes e castanhas.

Fatores de risco
Encabeçam a lista dos fatores de risco – que causam as maiores perdas de saúde – a pressão alta, o tabagismo e o alcoolismo. O sedentarismo também está no ranking. (fotos: Sxc.hu/ Karen Barefoot, Konstanty Paluchowski, engindeniz)

A África subsaariana contrastou bastante com outras regiões do mundo: muitos dos riscos e problemas da década de 1990, como subnutrição, poluição do ar doméstico e amamentação insuficiente, persistem lá como causas de morte.

Ironias e paradoxos

O resumo do GBD 2010, como apresentado em um comunicado de imprensa, é bem sintomático: os avanços da saúde mundial nos brindam com uma ironia devastadora: mais crianças estão chegando à fase adulta e, como adultos, estão vivendo mais; porém, mais doentes. Outro modo de ver a questão: o ônus da saúde está cada vez mais se definindo como aquilo que nos faz doentes do que como aquilo que nos mata.

“O GBD 2010 é muito importante, porque utiliza indicadores que complementam os estudos de mortalidade e morbidade que são mais comumente [empregados], auxiliando na elaboração de um quadro mais detalhado da situação de saúde das populações. Principalmente numa época em que estamos observando o aumento da expectativa de vida das pessoas, é importante avaliar a qualidade desses anos de vida que estão sendo acrescentados. A metodologia utilizada no GBD 2010 permite exatamente avaliar essa situação”, disse à CH Jarbas Barbosa, secretário de vigilância em saúde do Ministério da Saúde.

Mais crianças estão chegando à fase adulta e, como adultos, estão vivendo mais; porém, mais doentes

A assessoria do GBD 2010 preparou, para a CH, um extrato do estudo relativo ao Brasil. Nele, o país se revela como é: misto de Primeiro e Quarto Mundos. Dois destaques: i) o país teve “sucesso excelente” em reduzir a mortalidade de crianças abaixo de cinco anos de idade (média global, 58% de redução; por aqui, 84,5%); ii) na chamada América Latina Tropical – que inclui o Brasil –, a violência interpessoal é ainda um problema seríssimo ligado à incapacitação e à morte prematura de homens entre 15 e 40 anos de idade.

Espera-se que o estudo sirva como um guia geral para administradores da área de saúde, orientando onde, como e quanto investir. Nas palavras de uma entusiasta, o GBD 2010 é bem mais do que números, gráficos e tabelas que dão um instantâneo da situação mundial. O estudo é importante por apontar direções e tendências, ou seja, para onde a saúde (ou a falta dela) no mundo estão caminhando. Uma dessas tendências: tem sido feito um bom trabalho contra as doenças infecciosas, mas agora a população sofre cada vez mais com dor e problemas de mobilidade. Ao todo, o estudo gerou impressionantes 650 milhões de estimativas para os desafios globais da saúde.

No entanto, a maior contribuição que o GBD 2010 poderia dar à saúde global neste momento talvez seja o acalorado debate que promete ocorrer em torno de seus métodos e resultados. E os avanços que daí virão.


Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 300 (janeiro e fevereiro de 2013).

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