O que você vê na imagem acima? Um monte de rabiscos? Um pássaro, uma árvore, um avião? Pois saiba que o desenho é a mais antiga gravura em pedra já encontrada nas Américas, datada de no mínimo 9.400 anos e no máximo 10.400. Segundo os arqueólogos responsáveis pela descoberta, feita no sítio Lapa do Santo, em Matozinhos, Minas Gerais, a figura de 30 cm representa um homem exibindo seu falo ereto.

O mundo simbólico dos povos que habitavam o Brasil nesse período, entre o final do Pleistoceno e o início do Holoceno, é quase desconhecido, pois registros artísticos da época são raros. Por isso, a gravura de Lapa do Santo, apelidada de ‘Taradinho’ pelos pesquisadores, é uma verdadeira relíquia.

A gravura de Lapa do Santo, apelidada de ‘Taradinho’ pelos pesquisadores, é uma verdadeira relíquia

Mas essa preciosidade só foi descoberta e pôde ter sua idade conhecida por uma série de golpes de sorte. O arqueólogo Danilo Vicensotto, da Universidade de São Paulo (USP), que participou das escavações coordenadas por Walter Neves, da mesma instituição, conta que se não fosse uma decisão de último momento a figura poderia nunca ter sido encontrada.

“Quando estamos trabalhando em uma escavação arqueológica é impossível prever o que vamos encontrar, mas a descoberta dessa gravura, em particular, foi recheada de agradáveis surpresas”, diz Vicensotto. “Foi um achado feito nos últimos momentos da escavação, quando todas as preocupações já se concentravam em preparar o fechamento do sítio. Durante esse encerramento, tínhamos três quadras [equivalente a 3 m2] e precisávamos eleger apenas uma delas para escavar até o fundo, por questões de tempo e segurança. Foi exatamente a escolhida que acabou revelando essa descoberta!”

Encontrar a gravura pode ter sido incrível para os arqueólogos, mas de nada adiantaria se não pudessem medir com precisão a sua antiguidade. O método mais preciso usado pelos arqueólogos para descobrir a idade de materiais orgânicos é a datação por carbono-14. Essa substância está presente em toda matéria orgânica e tem sua concentração reduzida gradualmente com o passar do tempo, de modo que é possível saber a idade de algo pela medição da quantidade de carbono-14.

Por se tratar de um petróglifo picoteado, baixo relevo feito pelo desgaste da pedra, o Taradinho não poderia ser datado diretamente. A datação da pedra só daria a idade do mineral e não da figura.

Mas, felizmente, a gravura foi encontrada apenas 3 cm abaixo de uma fogueira. A proximidade indica que ambas foram feitas no mesmo período e pelo mesmo povo e que, portanto, têm a mesma idade. A datação do carvão da fogueira deu a resposta. “Foi uma imensa sorte”, diz Walter Neves. “Uma dessas situações que só acontece uma vez na carreira de alguém.”

Desenhos de estilo semelhante, retratando animais e humanos, mas considerados de época mais recente, já haviam sido encontrados na região. Segundo Neves, ainda assim é possível que existam por lá outras gravuras mais antigas ou tão antigas quanto o Taradinho, de difícil datação, no entanto, precisamente pela falta de material orgânico.

Desenho rupestre de homem nu
Arqueólogos limpam a gravura mais antiga das Américas já encontrada. (foto: Acervo LEEH)

No mesmo sítio arqueológico, foram encontrados 27 esqueletos humanos de cerca de 8 mil anos atrás, descendentes dos autores do Taradinho. A análise dos ossos indicou se tratar do chamado povo de Luzia, nome dado por Neves ao esqueleto humano mais antigo das Américas, encontrado em Lagoa Santa nos anos 1970.

Mais parecidos com os aborígenes da Austrália e com os atuais africanos do que com os indígenas brasileiros, esses primeiros americanos teriam vindo da Ásia e chegado ao continente há cerca de 14 mil anos pelo estreito de Behring, antes da chegada dos ancestrais dos índios atuais.

Apesar de bem aceita, a teoria de Neves sobre os primeiros habitantes do Brasil ainda é refutada por parte da comunidade científica, em especial a norte-americana, que defende o modelo Clóvis. Segundo essa outra teoria, o homem teria chegado à América somente há 11 mil anos. Para Neves e sua equipe, a descoberta da gravura da Lapa do Santo é mais uma evidência que contradiz o modelo norte-americano.

Uma questão de estilo

A pose do homem retratado na gravura da Lapa do Santo desperta curiosidade sobre o seu significado. Mas, segundo o especialista em arte rupestre André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as representações pré-históricas não podem ser interpretadas à luz de nossas crenças. “Apesar de chamados de ‘arte rupestre’, não podemos afirmar que esses desenhos tinham o mesmo papel que a arte tem para nós hoje”, afirma.

“A representação sexuada de figuras humanas ocorre em várias regiões do mundo e em várias épocas, mas têm, provavelmente, um significado diferente em cada caso – seja para explicitar o gênero dos seres representados, para aludir a funções reprodutivas ou apenas uma exibição da sexualidade (como os desenhos que encontramos hoje nos banheiros públicos), sem excluir outras possíveis razões.”

Independentemente da função, a figura com falo ereto recém-achada promete causar mudanças no que se sabe sobre a arte rupestre no país. Os grafismos pré-históricos também são divididos em diferentes estilos. A tradição Nordeste (mais prevalente, mas não exclusiva, dessa região) é caracterizada pela forte presença de figuras humanas em cenas de cotidiano, como caça e sexo.

Dentro dessa ‘escola’ de arte há uma subdivisão chamada Fácies Ballet, estilo encontrado na Lapa de Ballet, Lagoa Santa, caracterizado por desenhos de humanos estilizados com três dedos nos pés e mãos e cabeça em forma de C, como o Taradinho. Até o novo achado, acreditava-se que esse tipo de grafismo era recente, com menos de 3 mil anos, pois desenhos assim foram encontrados cobrindo figuras de estilos considerados mais antigos. Mas a descoberta da gravura do Taradinho põe essa ideia em dúvida.

Vicensotto: “A descoberta do Taradinho mostra que a arte rupestre no Brasil se diversificou bem antes do que pensávamos”

“Figuras desse estilo eram comumente interpretadas como sendo mais recentes devido à frequência de sua ocorrência e à diversidade estilística em relação a outras tradições mais antigas”, diz Danilo Vicensotto. “A descoberta do Taradinho mostra que a arte rupestre no Brasil se diversificou bem antes do que pensávamos.”

De acordo com Prous, agora será preciso formular uma nova teoria para a história dos estilos de arte rupestre no Brasil. Uma das possibilidades é que o estilo Ballet tenha se originado mais cedo, como parece mostrar a gravura do Taradinho, e continuado por oito milênios paralelamente a estilos que surgiram antes, como a tradição Planalto.

Outra hipótese é a de que a gravura do Taradinho constitua outro estilo, mais antigo, que, por acaso, tem semelhanças com o estilo Ballet, que só apareceu muito tempo depois. “Há argumentos a favor e contra cada uma dessas possibilidades e será necessário tempo e esforços para testá-las e responder essas indagações”, conjectura Prous. “Como sempre, achados arqueológicos levantam novas perguntas, exigindo pesquisas complementares e questionamento dos esquemas provisoriamente elaborados pelos pesquisadores.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 292 (maio de 2012).

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-22066
614_256 att-22064
614_256 att-22062
614_256 att-22060
614_256 att-22058
614_256 att-22054
614_256 att-22052
614_256 att-22048
614_256 att-22050
614_256 att-22046

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-22975
614_256 att-22985
614_256 att-22993
614_256 att-22995
614_256 att-22987
614_256 att-22991
614_256 att-22989
614_256 att-22999
614_256 att-22983
614_256 att-22997
614_256 att-22963
614_256 att-22937
614_256 att-22931
614_256 att-22965
614_256 att-23039