Aqui se contam três histórias: a de um aristocrata urbano, a de um nascido livre que virou escravo e a de um filho de vigário que se tornou jornalista e boêmio. Destinos dessemelhantes. Em comum, a cor de pele e o ativismo político no movimento abolicionista. Cada qual à sua maneira.
A primeira história é a de André Pinto Rebouças (1838-1898), filho de estadista do Império, com acesso aos partidos e à família imperial, posição social completada pela posse de escravos domésticos. Fez a carreira da elite social: curso de engenharia, parte dele na Europa, e obtenção de empregos e oportunidades por lobby junto a políticos e à sociedade de corte.
Estabeleceu-se como empresário, comandou grandes obras públicas, com salário alto e em posição de gerenciar sua própria política de favores. Foi condecorado pelo imperador D. Pedro II e obteve o cobiçado cargo de professor da Escola Politécnica.
Rebouças se interessou pela abolição em 1867, como parte de seu projeto de modernização do país. O assunto entrava na agenda política, com discussão de uma Lei do Ventre Livre, quando um subordinado seu pediu-lhe a alforria de escravo das obras sob seu comando. Rebouças não só concedeu a liberdade ao Chico encanador, como incluiu o fim da escravidão em sua retórica de empresário modernizador.
No entanto, como os Rebouças tinham escravos em casa, foi logo acusado de “escravagista”. Reagiu alforriando em 1868 “nossa cria Guilhermina” – embora apenas em 1870 libertasse os outros três escravos da casa – e respondeu ao acusador, conforme registra seu diário, em 15 de junho de 1868: “Sou abolicionista de coração (…) e espero em Deus não morrer sem ter dado ao meu país as mais exuberantes provas da minha dedicação à Santa Causa da Emancipação.”
O segundo personagem dessa história é Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), filho de africana livre, quitandeira, rebelde da revolta malê – a rebelião dos escravos de origem muçulmana, na Bahia, em 1835. A mãe deixou o filho com o pai, fidalgo, que o vendeu como escravo quando ele tinha 10 anos.
Luiz foi levado de Salvador a São Paulo, onde aprendeu ofícios de escravo doméstico e de ganho. Ficou amigo de um estudante de direito, que lhe ensinou letras, leis e política. Aos 18 anos, Gama usou exatamente a lei para se declarar livre. Daí em diante, arranjou vários empregos e, com apadrinhamento de José Bonifácio, o moço, líder do Partido Liberal em São Paulo, chegou à imprensa, onde redigia sátiras contra costumes e instituições.
Gama experimentava ascensão social e vislumbrou completá-la com o diploma de direito. Mas fecharam-lhe as portas da faculdade. Virou rábula e enturmou com anticlericais, republicanos e abolicionistas. No fim dos anos 1870, se pôs de crítico do Império nos jornais, com o bordão: o Brasil “sem reis e sem escravos”.
O terceiro vértice desse triângulo nasceu da mancebia de liberta quitandeira com vigário-fazendeiro da paróquia de Campos, que o criou – embora negando-lhe o sobrenome. De modo que José Carlos do Patrocínio (1853-1905) foi menino de engenho até a adolescência, quando reagiu à ilegitimidade doméstica estapeando uma das amantes paternas. Então, foi mandado para o Rio de Janeiro, em 1868. Logo perdeu a mesada, mas o circuito de favores do pai assegurou-lhe casa, emprego e vaga na Faculdade de Medicina.
Patrocínio foi tecendo rede de contatos na boemia, com músicos, poetas e atrizes, e no Partido Liberal, e logo se tornou revisor do jornal deles, A Reforma. Tudo ia bem quando foi barrado no meio do curso de medicina, por causa de sua origem – ou da falta dela. Então, em 1873, Patrocínio começou a reclamar das injustiças do Império, em jornaizinhos da faculdade, com poemas como esse, transcrito por seu biógrafo, Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981).
“Quebremos essas algemas
Que oprimem nossos irmãos,
(…)
Brademos aos quatro ventos:
‘Escravos, sois cidadãos!’”
Patrocínio saiu da faculdade só com diploma de farmacêutico, mas iniciado no republicanismo e no abolicionismo, que difundiu na Gazeta de Notícias, jornal de propriedade de outro mulato, José Ferreira de Araújo (1846-1900), que lhe deu a crônica política. Patrocínio a assinava como ‘Proudhomme’, adaptando a máxima do filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) ao contexto local: “A escravidão é um roubo!”
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Angela Alonso
Departamento de Sociologia
Universidade de São Paulo