Em maio de 1958, o então vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (1913-1994), fez uma visita à América do Sul. Estavam previstos encontros com chefes de Estado de vários países do continente, mas o principal objetivo declarado do gesto diplomático era o apoio à posse de Arturo Frondizi (1908-1995), primeiro presidente eleito da Argentina após a queda, três anos antes, de Juan Domingo Perón (1895-1974).
Em todas as cidades visitadas houve protestos de estudantes e grupos de esquerda contra a presença de Nixon. Em Buenos Aires, no entanto, políticos e intelectuais assinaram um manifesto que condenava tais episódios.
Entre eles estava Jorge Luis Borges, diretor da Biblioteca Nacional e parte do corpo governista prestigiado pela visita, de modo que a inclusão de sua assinatura no manifesto não foi surpreendente. Nem por isso o próprio Borges, em um jantar na casa do amigo e também escritor Adolfo Bioy Casares (1914-1999), deixou de ver com bem-humorado estranhamento o nome de ambos na lista de assinantes.
“Parecemos um grupo de velhos tories”, ele comentou, referindo-se aos membros do partido conservador inglês. “Sim. De old fogeys [velhos rabugentos]”, acrescentou Bioy.
Dessas falas podem ser extraídas uma constatação e um problema, que se complementam. A primeira é de que o humor e a autoironia não deixaram de ser traços marcantes da personalidade de Borges naqueles anos, em que pese sua aliança com setores mais sisudos e mais rabugentos da oficialidade local, dos quais não se esperaria esse tipo de comentário.
Já a pergunta que surge é a seguinte: por que velhos tories, e não velhos republicanos, tendo em vista a origem política do personagem que ele defendia? Por que o Partido Conservador britânico é evocado, e não a direita norte-americana?
Herança inglesa
Talvez porque Borges, muito tempo antes, já houvesse reconhecido em seu comportamento traços que atribuía à sua “herança inglesa”, referindo-se a parte dos antepassados do ramo paterno de sua família, bem como a algumas de suas mais admiradas referências literárias.
Entre essas características estavam o gosto pela leitura, certa domesticidade burguesa, a discrição, um humor sutil e a autoironia – ou seja, a capacidade de ver os próprios valores e atos em uma perspectiva distanciada, captando o que neles pode existir de patético ou ridículo, sem que isso signifique o abandono desses valores ou um relativismo descompromissado.
A postura adotada em 1958 – tanto ao assinar o manifesto, quanto ao satirizar o próprio gesto – estava longe de ser exatamente uma novidade em sua trajetória. Mas a celebridade que alcançou como um artífice de histórias ‘fantásticas’ e ‘irreais’ foi, por muito tempo, um entrave para a compreensão de aspectos realistas e moderados de suas posições políticas, expressos sempre com certo distanciamento irônico, mas já presentes em seus escritos desde os anos 1930.
Tais aspectos, por sua vez, estão na base da índole conservadora inglesa, também caracterizada por uma delicada e pragmática oscilação entre tradicionalismo e liberalismo. Nesse ponto, não me refiro aos tories em particular, e sim a um sistema de equilíbrio (político, estilístico e moral) que marcou a experiência de toda uma nação, e, em consequência, o ambiente do século 19, no qual a Inglaterra assumiu uma supremacia mundial incontestável.
Entender como um herdeiro consciente da declinante tradição oitocentista inglesa situou-se nos debates e conflitos da primeira metade do século 20 é, portanto, uma forma de entender a vida e a obra de Borges.
Gustavo Naves Franco
Departamento de Artes,
Universidade Federal de Ouro Preto