A representação do eu na vida cotidiana, de Erving Goffman, foi publicado pela primeira vez em 1959 e contribuiu para a celebridade acadêmica de seu autor. Além de ter impactado a sociologia contemporânea, foi lido em várias partes do mundo por vasto e diferenciado público. No Brasil, a primeira edição saiu em 1985, pela Vozes, que, além de reimprimir este livro (na 18ª edição), vem nos últimos anos publicando outros importantes volumes da obra de Goffman.
Não deixa de ser paradoxal que um dos autores mais influentes na sociologia americana do século passado seja de origem canadense. Goffman nasceu em 1922 na pequena cidade de Mannville, em Alberta, descendente de judeus imigrantes da Ucrânia. Sua formação inicial não foi em sociologia, mas em química. No período 1943-44, trabalhou no National Film Board do Canadá, que produzia documentários, experiência que teve impacto posterior em seu refinado senso de observação dos comportamentos dos atores sociais na vida cotidiana.
Em 1944, ingressou na Universidade de Toronto para iniciar seu treinamento em sociologia. No ano seguinte, decidiu prosseguir seus estudos no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, de grande prestígio acadêmico. A passagem por essa universidade marcou de forma profunda sua produção intelectual.
Ao longo de sua vida acadêmica, Goffman privilegiou a análise do problema da interação social, presente já na tese de doutorado e também no discurso como presidente da American Sociological Association, em 1982, que não chegou a ler devido à sua morte prematura em novembro daquele ano. Estava interessado em compreender a complexa trama que envolve o encontro de dois ou mais indivíduos. Suas análises buscavam apreender os mecanismos sociais que sustentam e/ou comprometem os processos da interação entre os indivíduos nas mais diversas situações concretas: em um elevador, uma conversa informal, uma entrevista para obtenção de trabalho, uma fábrica, um hospital psiquiátrico etc.
Face a face
Em sua percepção, a relação face a face que os indivíduos travam entre si em situações sociais concretas constitui um domínio de investigação distinguível – a ordem de interação – que possui suas estruturas, processos e regularidades específicas, não podendo ser reduzida a situações macrossociais e cujo método adequado de investigação repousa na microanálise.
Ao recuperar a contribuição do sociólogo Willian Thomas a respeito do impacto da ‘definição da situação’ sobre o comportamento que os indivíduos desenvolvem entre si, Goffman enfatizou que as condições situacionais afetam, informam e circunscrevem as ações sociais no tempo e no espaço. Nesse sentido, insistiu que a compreensão da trama interacional deve levar em consideração a existência de situações sociais específicas nas quais os indivíduos encontram-se fisicamente presentes, desenvolvem seus comportamentos, interpretam e respondem às ações dos demais envolvidos nesse processo.
Em A representação do eu na vida cotidiana, Goffman usou parte das observações realizadas durante 18 meses nas ilhas Shetland, Escócia, para sua tese de doutorado, defendida em 1953. Utilizou diversas fontes sociológicas e também lançou mão de extenso material literário para ilustrar sua argumentação. Ele empregou a metáfora da dramaturgia da representação teatral para analisar como os indivíduos apresentam-se uns diante dos outros e como regulam as informações e manejam a imagem de si que procuram transmitir durante uma interação social.
Na representação teatral destacam-se três elementos: o ator que se apresenta sob a máscara de um personagem, outros personagens da peça e a plateia. O autor reduz esses elementos a apenas dois: um indivíduo que representa determinado papel social na vida real e a plateia, ou seja, os outros que estão em interação com ele. A plateia pode ser composta por poucos indivíduos ou por uma coletividade.
A partir de um vocabulário dramatúrgico, Goffman descreve vários tipos de encontros que os indivíduos realizam na vida cotidiana, tais como visitar um amigo, comparecer a um funeral, comer em um restaurante etc. Em cada um deles, o indivíduo busca apresentar um comportamento adequado à situação específica na qual ocorre sua ação.
Temas dramatúrgicos
O livro explora seis temas dramatúrgicos. As representações são as performances que os indivíduos realizam para projetar uma determinada imagem de si. Por equipe entende-se qualquer grupo de indivíduos que cooperam entre si como grupo de atores. As regiões se distinguem em ‘fachada’ (onde os atores apresentam suas identidades públicas em função do desempenho de um determinado papel social para uma plateia) e ‘bastidores’ (onde os atores relaxam do papel social que representam). Papéis discrepantes expressam acontecimentos inesperados que podem desacreditar a impressão que um indivíduo ou uma equipe deseja projetar para uma plateia.
A comunicação imprópria refere-se a determinados comportamentos dos membros de uma equipe que desautorizam a impressão que ela desejava passar para um público. E a arte de manipular a impressão a determinadas medidas defensivas usadas pelos atores para evitar incidentes durante o processo interacional que possam colocar em risco a representação e medidas protetoras usadas pela plateia para ajudar a reparar a representação caso tenha ocorrido alguma ruptura durante a interação.
O autor estava particularmente interessado em analisar a performance dos indivíduos diante da presença de outros de modo a influenciar a percepção que tenham dele. Assim, quando uma pessoa chega à presença de outros, empenha-se em transmitir-lhes certa impressão. Pode desejar que pensem muito bem dela. Às vezes, agirá de forma calculada para alcançar esse objetivo; às vezes tem pouca consciência de estar procedendo assim; em outras situações, um determinado papel que exerce na sociedade a conduzirá a passar uma impressão deliberada de um determinado tipo de pessoa que pretende ser. Quando um ator assume um papel social estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada corresponde a esse papel. Nesse sentido, existem diferenças entre fachadas mantidas por um médico, uma enfermeira e um vendedor de ferros-velhos.
Na medida em que os outros que participam de uma interação agem como se o indivíduo tivesse transmitido a eles uma determinada impressão de si, para Goffman o indivíduo projetou uma definição da situação, ou seja, informou-os a respeito do que é na vida social. A performance implica expressões, atitudes e comportamentos que permitem ao indivíduo evocar uma autoimagem para os outros. Ao projetar uma definição da situação, isto é, apresentar-se como uma pessoa de determinada categoria social, automaticamente ele tem a expectativa moral de que os outros o tratem e valorizem de maneira adequada.
A interação social implica a produção de um consenso operacional construído conjuntamente pelos participantes envolvidos – por meio de sensibilidade diplomática, tato e savoirfaire –, no qual tendem a apoiar valores aos quais todos os presentes prestam falsa homenagem e evitam assuntos que poderiam comprometer o modus vivendi em construção naquele momento. Na medida em que a sustentação da situação deriva de um empreendimento coletivo, a análise apropriada não repousa no indivíduo isolado e seu aparato psicológico, mas nas relações mutuamente construídas entre as diferentes pessoas presentes. Nessa perspectiva, Goffman reivindica uma sociologia das ocasiões, capaz de analisar o empreendimento interacional, uma vez que busca analisar não o homem em seus momentos, mas os momentos e seus homens.
A crise na trama interacional surge quando um determinado acontecimento coloca em dúvida ou contradiz a imagem de si que determinado indivíduo tentou transmitir aos demais. Mesmo em interações que se desenrolam de forma razoavelmente pacífica podem ocorrer pequenos eventos involuntários, que podem solapar a impressão que um indivíduo procurava transmitir. Goffman ressaltou que em nenhum momento o ator possui completo domínio do fluxo dos acontecimentos durante uma interação. Com isso, quis destacar que a impressão criada por uma determinada representação constitui uma situação delicada, frágil, que pode ser quebrada a qualquer momento por pequenos contratempos.
A coerência expressiva exigida nas representações dos indivíduos coloca em evidência uma dissonância entre nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado. Como seres humanos, possuímos estados de espírito, humores, impulsos que variam segundo as circunstâncias. No entanto, quando um indivíduo assume um determinado papel social, torna-se inapropriado estar sujeito a altos e baixos em seu comportamento. Existe uma expectativa social de que o desempenho de certo papel implique uma burocratização do espírito a fim de que o indivíduo inspire a confiança de executá-lo de forma constante ao longo do tempo.
Diante da situação de possível descrédito social que pode surgir no processo interacional, o indivíduo pode perder o controle muscular, gaguejar, arrotar, ter uma flatulência, bocejar, tropeçar etc. Ao apresentar dificuldades em manejar seu comportamento emocional, pode expressar preocupação demais ou pouco interesse na representação do outro, ter um comportamento de ansiedade excessiva, explosão de riso ou de raiva que o incapacita momentaneamente a agir de forma adequada etc.
Sentimento de embaraço
Conforme determinados fatos perturbadores ocorrem durante um processo interacional, interrompendo seu desenrolar, cria-se um sentimento de embaraço entre seus participantes. Para Goffman, um indivíduo reconhece um sentimento de embaraço nos outros e em si mesmo quando surgem sinais objetivos de distúrbios corporais e emocionais, como sinais avermelhados no rosto, transpiração em excesso, perda do domínio da comunicação verbal, tremor nas mãos, dificuldade no manejo do olhar, sorriso fixo etc. Nessa circunstância, os participantes descobrem que o acordo tácito que, de forma explícita ou implícita, vinha sustentando suas condutas estava equivocado.
Nesse momento, o sistema da interação entra em colapso, gerando uma situação confusa e de embaraço para o indivíduo cuja representação foi desacreditada e para os demais, que estavam propensos a acreditar em sua representação. Goffman ressalta que, no processo de desmoronamento do processo interacional, o sentimento de embaraço contamina, contagia e infringe sofrimento social a todos os participantes, sendo que o indivíduo que eventualmente contribuiu para desacreditar um outro se sente também envergonhado e culpado, pois, ao destruir a imagem do outro, ele destrói sua própria imagem enquanto ator capaz de se comportar de forma hábil e diplomática em situações interacionais delicadas.
A sociologia de Goffman, ao assumir que o sentimento de embaraço causa um profundo sofrimento social para os indivíduos, concebeu o ator social mais preocupado em minimizar possíveis riscos durante sua performance no processo interacional do que em maximizar ganhos sociais. Na medida em que uma simples nota fora de compasso pode comprometer uma performance social em sua totalidade, para ele, homens e mulheres, de forma consciente ou inconsciente, conduzem suas vidas procurando a todo custo evitar situações que contradigam manifestamente a imagem que o indivíduo e/ou uma equipe projetou de si.
O livro sugere que todo ator que vive em sociedade paga um alto preço emocional ao exercer no dia a dia um conjunto de papéis sociais. Não basta desempenhá-los. Trata-se também de persuadir diariamente os outros atores a respeito da coerência entre as imagens correspondentes a um determinado papel que está executando e exibir comportamentos adequados ao que insinuou que é socialmente. A performance de um ator implica uma autodisciplina do seu eu demasiado humano e um constante cuidado para representar de forma convincente seu eu socializado de maneira a não desacreditar sua representação. O preço pago quando os outros percebem um descompasso entre as aparências alimentadas por um indivíduo e a face incongruente de seu comportamento é a humilhação social, a condenação pelos outros homens, a perda da reputação e do crédito social.
O leitor tem diante de si um livro estimulante intelectualmente, que o levará a compreender de forma mais clara, e talvez com certa ironia, as representações dos indivíduos com os quais convive em diversos contextos da vida cotidiana. E é possível que o conduza a desenvolver uma autoironia a respeito de suas próprias representações no dia a dia.
Carlos Benedito Martins
Departamento de Sociologia
Universidade de Brasília