Em 1996, o cineasta dinamarquês Paul Alexander Juutilainen lançou o documentário Os hipopótamos de Herbert. Uma história sobre a revolução no paraíso (Herbert’s Hippopotamus: A story about revolution in paradise), que durante algum tempo ficou meio perdido e agora pode ser facilmente encontrado no YouTube.
O filme de pouco mais de uma hora tem como foco as atividades do filósofo alemão Herbert Marcuse, nos anos de 1968 e 1969, no campus da Universidade da Califórnia em San Diego, e o efeito de suas reflexões sobre os estudantes e a sociedade da época.
No documentário, Marcuse explica a coleção de hipopótamos, espalhados em seu escritório, fazendo uma analogia entre esse animal – que ao se movimentar espalha água para todos os lados – e a filosofia que, do seu ponto de vista, também precisa, com seus movimentos, espalhar conhecimentos a seu redor. O pensamento apresentado por meio dessa metáfora está presente na obra do filósofo desde seus primeiros ensaios, quando a alienação da cultura em relação ao mundo da vida aparece como problema.
Assista aqui ao documentário
A cultura é percebida como uma dimensão autônoma onde os valores ideais encontram-se separados dos materiais, de modo que os seres humanos possam encontrar e vivenciar, nessa esfera abstrata, desejos, sentimentos e sonhos que não encontram lugar no assim chamado mundo real. Isolada em uma esfera própria, a cultura apresenta um mundo mais nobre, mais valioso, melhor do que o mundo da luta diária pela existência e ao qual todos podem ter acesso em sua interioridade sem precisar transformar a realidade de fato existente.
Contra essa situação social da cultura, Marcuse pensa uma forma de cultura capaz de penetrar capilarmente nas relações sociais e, seguindo a metáfora, encharcá-las com aqueles afetos, atitudes, gestos considerados mais elevados. Desse modo, o trabalho cultural aparece como um instrumento para transformações sociais – a partir da disseminação dos valores intimamente considerados superiores que, não mais isolados, seriam contagiosos. Essa, entre outras de suas posições, transformou Marcuse em um líder simbólico dos movimentos de protestos ocorridos nos anos focados no documentário Os hipopótamos de Herbert.
Convite da Playboy
O filme, composto por seis partes, mescla entrevistas feitas ao próprio filósofo – vale destacar sua resposta a um convite feito pela revista Playboy: “Aceito se me colocarem na página central dupla” – com entrevistas de conhecidos intelectuais, como Fredric Jameson, Andrew Feenberg, Reinhard Lettau, Angela Davis, entre outros. É também apresentado o discurso feito por Marcuse em uma manifestação estudantil, ocorrida em 24 de outubro de 1969, quando o reitor do campus indeferiu a eleição de Angela Davis como representante dos alunos.
É em uma perspectiva mais ampla do que a do campus que o caso precisa ser analisado, considera o filósofo. Em suas palavras: “A luta por Angela é uma luta por você, por nós, eu gostaria de pensar, que não podemos mais tolerar, que ficamos doentes do estômago ao ver a mais rica sociedade do mundo viver em uma economia de morte, de obsolescência planejada, de poluição, que nós não podemos mais tolerar. E essa intolerância, essa abençoada intolerância, eu espero, atravessa o assim chamado abismo de gerações porque, ainda que eu seja um pouco mais velho que vocês, para mim é tão intolerável quanto é para vocês”.
Marcuse, na época com 72 anos de idade, diz ainda que Angela Davis (na época sua orientanda) era a vítima ideal, por muitas razões: “Ela é negra, ela é militante, ela é comunista, ela é altamente inteligente, ela é bonita. E esta combinação é mais do que o sistema pode tolerar”.
Por meio das imagens exibidas no documentário, pode-se ver ainda como o pensamento de Marcuse, que adquiriu fama entre os estudantes e os movimentos radicais da década de 1960, conseguiu desagradar ao Pravda (jornal oficial da antiga União Soviética), ao Papa, a Ronald Reagan, então governador da Califórnia, à Legião americana. Conforme se vê, o movimento dos hipopótamos pode incomodar bastante.
Imaculada Kangussu
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
Universidade Federal de Ouro Preto
Autora de Sobre Eros (Ed. Scriptum, 2007, Belo Horizonte) e Leis da liberdade (Ed. Loyola, 2008, São Paulo)
Texto originalmente publicado no sobreCultura 16.