Nossa sociedade está dominada pela automedicação e pelo uso indevido da química para melhorar o desempenho ou a aparência pessoal.
Essas práticas são estimuladas sob a ótica da ‘saúde’ (a conselho de pessoas próximas, quase sempre sem conhecimento suficiente), do estudo e do trabalho (para manter o estado de alerta), do padrão estético (para emagrecer ou ampliar a musculatura), do convívio social (para ‘enturmar’ – caso do cigarro, de bebidas alcoólicas e de drogas como maconha, cocaína e ecstasy) e até com finalidade religiosa (algumas seitas utilizam alucinógenos em seus rituais).
Muitas pessoas acreditam que essas substâncias não sejam prejudiciais, ou que os ‘ganhos’ compensariam os riscos, o que é um grande erro. Os anabolizantes, por exemplo, são tidos como ‘glamurosos’ e apresentados como a solução para problemas estéticos e de força muscular, mas têm os mesmos efeitos colaterais das chamadas drogas ‘pesadas’.
Não é divulgado que causam dependência química, sendo motivo crescente de internações em clínicas de recuperação de drogados, e mudança de humor, em muitos casos com aumento da agressividade. Mais que isso, o uso crônico pode causar problemas sérios no fígado (inclusive câncer) e no sistema cardiovascular (como acidentes vasculares cerebrais), além de outras doenças.
Portanto, não é compreensível a tolerância da sociedade para com os usuários de anabolizantes e seu uso indiscriminado em academias de ginástica, onde as pessoas deveriam buscar uma atividade voltada à melhoria de sua saúde.
Quando a sociedade perde seu rumo, cabe aos poderes constituídos fiscalizar e coibir as práticas indevidas. No âmbito do esporte, cabe às confederações e federações esportivas zelar pela saúde dos competidores e pela ética na competição, realizando, nos atletas filiados, o controle de dopagem (ou doping, como é muito conhecido).
As drogas são moléculas e sua atividade no corpo humano se dá por meio de interações moleculares. Como são identificadas pelo organismo como algo estranho, este procura eliminá-las, transformando-as em moléculas mais fáceis de transportar para a corrente sanguínea e daí para as excreções naturais (urina, fezes, suor) e para cabelos e pelos.
Portanto, para avaliar se houve dopagem é preciso determinar a presença da droga ou de seus metabólitos em material obtido do atleta. A urina, que acumula os resíduos eliminados pelo organismo, é o material preferencial para essa análise, mas, para certos tipos de substância, a capacidade de detecção é maior quando a investigação é feita no sangue ou no plasma sanguíneo.
Laboratórios autorizados
Embora ainda existam discordâncias, o controle de dopagem no esporte é necessário para combater os malefícios causados pela prática à saúde e garantir a igualdade de condições nas competições.
Nos dois aspectos, a química tem papel fundamental: essa ciência demonstra esses malefícios, por meio das áreas correlatas de farmacologia e toxicologia, e permite detectar o uso de substâncias proibidas, pela análise da composição de fluidos e tecidos cedidos pelo atleta.
A profissionalização levou o desenvolvimento do esporte aos limites da capacidade humana. No atletismo, por exemplo, em provas de velocidade, os recordes diferem em centésimos de segundo! Esse é o terreno fértil para a dopagem: um ‘algo mais’, por menor que seja, pode resultar nessas pequenas diferenças de desempenho, com enorme ganho para o vencedor.
Assim, premidos pela necessidade de vencer a qualquer custo, atletas utilizam diferentes tipos de substâncias, como estimulantes, narcóticos/analgésicos, anabolizantes, corticosteroides, diuréticos, betabloqueadores, carreadores de oxigênio, hormônios (eritropoietina, hormônio do crescimento, insulina), produtos mascarantes (para burlar as aná lises de controle), transfusões de sangue e, em breve, dopagem genética.
Para cobrir todas essas possibilidades de dopagem, a química analítica precisou desenvolver-se, procurando antecipar-se às novas práticas idealizadas pelos atletas e seus (maus) colaboradores.
Técnicas sofisticadas de análise, como cromatografia e espectrometria de massas, são as grandes responsáveis pelo sucesso do controle de dopagem. Como em qualquer sistema de controle, sempre haverá a fraude, mas os avanços da química analítica reduzem cada vez mais a impunidade.
Em alguns casos, a fraude ainda pode passar despercebida, mas os dados ou as amostras coletadas poderão ser reanalisados com técnicas cada vez mais apuradas, o que permitirá identificar a dopagem e punir os atletas anos após terem obtido suas medalhas.
Francisco Radler de Aquino Neto
Instituto de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro