Sem pressão, não há representação

De um ponto de vista estritamente minimalista, para que a assim chamada democracia representativa funcione, basta que alguns cidadãos – sequer a maioria – compareçam com regularidade às sessões eleitorais e depositem nas urnas, ou nas máquinas, as suas escolhas.

Em alguns países, nos quais o voto não é obrigatório, esse contingente pode até ser minoritário no conjunto dos adultos aptos a votar. Basta que haja alguma autorização eleitoral coletiva para que um corpo de representantes seja instalado.

Portanto, não se requer dos eleitores, para que o sistema ‘funcione’, que devotem à política mais tempo do que o gasto no trajeto até as sessões eleitorais e nas eventuais filas de espera. O ato de escolha não exige qualquer presença ou acompanhamento daquilo que os escolhidos fazem com o voto que depositaram.

O ato de escolha não exige qualquer presença ou acompanhamento daquilo que os escolhidos fazem com o voto que depositaram

Há quem defenda que esse mínimo é mais do que suficiente e, mesmo, ótimo. Edmund Burke (1729-1797), pensador político e parlamentar de origem irlandesa, mas atuante na Inglaterra do século 18, sustentava a tese da radical independência do parlamentar em relação a seus eleitores.

Estes são movidos sempre por razões particularistas, enquanto os representantes devem sempre ter em vista o interesse público.

Caberia aos últimos, em consulta exclusiva a suas consciências, determinar o que seja tal interesse público. Em tempos mais recentes, correntes importantes da ciência política norte-americana – a chamada escola pluralista, em particular – chegaram a afirmar que certa apatia pública é uma condição para a estabilidade das democracias.

Se todos participassem ao mesmo tempo, os sistemas políticos não seriam capazes de ‘processar’ todas as ‘demandas sociais’ e caminhariam para uma espécie de colapso institucional. No limite, as democracias, se baseadas na participação plena e permanente de todos os seus cidadãos, seriam ingovernáveis.

Urna eletrônica
Urna eletrônica usada nas eleições brasileiras (foto: José Cruz / Agencia Brasil).

Voto vazio

Tudo isso nos conduz a uma teoria da democracia que diminui a importância do voto e trata a participação política não-eleitoral como dimensão pouco relevante do processo e do aprendizado políticos. Se é verdade que bastam alguns votos para efetuar a escolha de representantes, é necessário acrescentar à análise a questão da qualidade da representação.

Tudo indica que a qualidade da demanda social por representação afeta a qualidade da representação propriamente dita. Em outros termos, a presença de cidadãos dispostos a devotar parte do seu tempo a alguma militância cívica e à observação crítica do que fazem seus representantes – para dizer o mínimo – não faz mal à saúde dos sistemas representativos. Pode ser que faça mal a alguns representantes, mas por certo não é nocivo à representação.

A presença de cidadãos dispostos a algumamilitância cívica e observação crítica não faz mal à saúde dos sistemasrepresentativos

O recente episódio do movimento ‘Ficha Limpa’ constitui ótima oportunidade para refletir a respeito dessas considerações.

Esse movimento colheu quase dois milhões de assinaturas de eleitores em apoio a uma iniciativa popular de um projeto de lei que visa impedir candidaturas a postos eletivos de pessoas com condenações na Justiça.

Acolhido por 31 parlamentares, o projeto foi introduzido no processo legislativo e aprovado pela Câmara de Deputados e pelo Senado Federal, não sem sofrer algumas mudanças atenuantes, que não o descaracterizaram. Independentemente da decisão do presidente da República, a quem cabe agora sancioná-lo, há aqui algo de interessante a observar.

Antes de tudo, é necessário levar em conta que a melhoria da qualidade da representação depende não tanto da definição de critérios necessários de moralidade para o exercício dos mandatos, mas principalmente da presença de cidadãos ativos a exercer pressão legítima e eficaz sobre o parlamento.

Em outros termos, o exemplo do ‘Ficha Limpa’ vale mais pelo aprendizado do que pode significar uma cultura da representação política que vá além de um comparecimento eleitoral ocasional. ‘Representação’, sem alguma presença ativa dos representados, por meio de pressão e observação atenta, não passa de formalismo e de palavra vazia.

Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(Universidade Candido Mendes)
Universidade Federal Fluminense
rlessa@iuperj.br

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