Os jornais têm registrado, nas últimas semanas, a tensão instaurada em torno da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Registro recente, problema antigo: o conflito está posto há pelo menos 30 anos e tem como protagonistas índios de diferentes etnias, principalmente macuxis e wapixanas, ocupantes tradicionais da região, e diferentes invasores, principalmente fazendeiros e seus agregados. A reserva, criada no governo Fernando Henrique Cardoso, foi, afinal, demarcada em 2005, pelo atual. A demarcação declara 1,7 milhão de hectares – correspondentes a 7% da área de Roraima – de usufruto exclusivo dos índios que lá vivem.
A questão ganhou maior nervosismo com a intervenção do Comandante Militar da Amazônia, general Augusto Heleno Pereira, que desqualificou a política indigenista do governo e exumou o ‘mantra’ da soberania nacional. Dessa manifestação, digamos, conceitual decorreram outras, de natureza prática, sugerindo que os militares estão dispostos a apoiar os supostos direitos dos ocupantes não-índios da reserva.
Diante do quadro, a comunidade científica, por meio dos antropólogos, vem cumprindo um papel de enorme relevância pública. Ao fazê-lo, revivem uma máxima um tanto esquecida e em desuso pelos cientistas sociais: a de que o conhecimento produzido sobre a sociedade tem como uma de suas dimensões cruciais a perspectiva da intervenção prática. Nesse caso, uma intervenção que visa oferecer à avaliação pública uma possibilidade de análise alternativa aos preconceitos e à indiferença que marcam as formas usuais de lidar com a questão indígena no país.
Entre as manifestações dos antropólogos, cabe destaque a artigo de Manuela Carneiro da Cunha, da Universidade de Chicago, em co-autoria com a jurista Ana Valéria Araújo, no jornal Folha de S. Paulo, em 26 de abril; a entrevista de Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, no mesmo dia, no caderno ‘Aliás’ do jornal O Estado de S. Paulo; e a nota do presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Luiz Roberto Cardoso de Oliveira, da Universidade de Brasília, em 8 de maio.
Em um país que ignora os termos da Constituição, um dos méritos da intervenção dos antropólogos foi o de ter chamado a atenção para o tratamento que a Carta de 1988 confere à “questão indígena”.
Nos artigos 231 e 232, a Constituição define o marco legal no qual se inscreve essa questão. O primeiro garante o reconhecimento aos índios de sua organização social, costumes, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União a obrigação de demarcá-las e protegê-las. A expressão “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” tem significado preciso: terras habitadas em caráter permanente e usadas para atividades produtivas, “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo usos, costumes e tradições”. O artigo 232 não é menos importante: reconhece os índios como sujeitos de direito, como partes legítimas para ingressar em juízo em sua defesa.
Além disso, o artigo 20 (inciso XI) define as áreas indígenas como um dos “bens” da União e o artigo 22 (inciso XV) determina que apenas a esta compete legislar sobre assuntos indígenas. Pode-se imaginar o tipo de legislação que seria proposta pela Assembléia Legislativa de Roraima, se dispusesse de tal atribuição.
Está em curso uma grave falácia, a de que a soberania nacional é incompatível com a presença indígena em áreas de fronteira. A tradição brasileira de demarcação de fronteiras demonstra o contrário: por diversas vezes a presença de indígenas brasileiros – sim, brasileiros – foi crucial para o reconhecimento de pretensões territoriais do país. O pior é supor que a ocupação privada, com o que tem de pior – latifúndio associado à predação ambiental – é o que deve sustentar a soberania.
É mais do que hora de entender que não há soberania nacional possível fora do marco legal da Constituição. Os índios de Roraima representam, a um só tempo, seus traços culturais próprios e o estado de direito.
Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
e Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense
rlessa@iuperj.br