Três novidades sobre a tuberculose. A primeira revela como ela pode ter chegado ao continente americano. A outra promete levar a um diagnóstico para o quadro em sua forma ‘adormecida’. A terceira mostra como o crescimento do diabetes pode inflar os números da epidemia mundial de tuberculose.
A equipe do paleogeneticista Johannes Krause, da Universidade de Tübingen (Alemanha), por meio da análise de restos de DNA de bactérias da tuberculose, mostrou que a doença pode ter chegado ao continente americano por meio de focas ou leões-marinhos. O material genético analisado por Krause e colegas foi extraído de esqueletos humanos com cerca de mil anos de idade achados no Peru.
Sabe-se que as linhagens da Mycobacterium tuberculosis (bactéria que causa a doença em humanos) encontradas hoje em habitantes do continente americano são geneticamente muito semelhantes àquelas achadas na Europa – daí se pensar que a introdução do quadro por aqui ocorreu no século 16, com a chegada dos colonizadores espanhóis.
No entanto, Krause e colegas, ao analisarem os genomas de três amostras de DNA da bactéria extraídas dos esqueletos, concluíram que elas são similares à Mycobacterium pinnipedii, adaptada a focas e leões-marinhos. Com base nisso, os autores propõem que o contágio tenha ocorrido entre esses mamíferos marinhos e humanos. E só mais tarde é que essa linhagem teria sido substituída pela M. tuberculosis europeia, mais agressiva. O artigo está em Nature.
Outro desdobramento interessante (e intrigante) do estudo: o ancestral comum mais recente da M. tuberculosis teria apenas 6 mil anos de idade. Segundo Krause e colegas, foi nessa época que focas e leões-marinhos teriam sido infectados, nas costas africanas, por algum hospedeiro da bactéria.
No entanto, esse intervalo de tempo contrasta muito com os 70 mil anos que o conhecimento atual atribui à emergência dessa doença (Nature Genetics on-line). Acredita-se também que os humanos tenham adquirido o micro-organismo ainda antes de migrar da África para outros continentes.
Críticos dizem que seria preciso encontrar mais esqueletos antigos com a bactéria – principalmente, em outras localidades do continente americano – para que as conclusões de Krause e colegas sejam corroboradas.
‘Adormecida’ diagnosticada
O segundo artigo traz a esperança de que, com base em seus resultados, seja desenvolvido um método para diagnosticar a chamada tuberculose latente – ou seja, a pessoa tem a bactéria, mas não manifesta os sintomas da doença.
Dennis Montoya, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles (EUA), e colegas mostraram que a proteína IL-32 (interleucina-32) poderia ser a razão pela qual um paciente portador da M. tuberculosis não adoece. Segundo os autores, essa proteína (em níveis mais elevados que o normal) poderia ser a responsável por ativar o sistema de defesa do organismo contra a bactéria. O artigo está em Science Translational Medicine.
Montoya e colegas mostraram ainda que o disparo da defesa contra a M. tuberculosis não depende só de altos níveis da IL-32, mas também de níveis adequados de vitamina D no organismo. Ou seja, proteína e vitamina devem agir conjuntamente (e em harmonia) para que a doença permaneça assintomática.
Isso explicaria por que populações com pele mais escura – que funciona como um filtro solar natural contra a radiação ultravioleta – seriam mais suscetíveis à tuberculose, como se vê com mais frequência na África e Ásia. A explicação é que a radiação solar é necessária para a fabricação dessa vitamina. Talvez, dizem os autores, níveis menores de vitamina D possam estar relacionados a índices mais elevados da doença. Se essas relações estiverem corretas, elas também poriam sob risco maior de desenvolver a doença pessoas com a pele muito branca que evitam tomar sol – no caso, para evitar o câncer de pele.
Os autores acreditam que medir os níveis sanguíneos da IL-32 poderia ser uma forma de diagnóstico para a presença da bactéria ou para fases ainda muito iniciais da doença. E que, talvez, a suplementação da vitamina D se mostre um modo eficaz de elevar as defesas contra o micro-organismo – trabalho anterior do mesmo grupo já havia mostrado que a vitamina D ajuda a matar a bactéria.
Para se ter ideia da importância desses resultados, basta lembrar que cerca de um terço do mundo está infectado com a M. tuberculosis. Mas só de 5% a 10% desse universo manifestam a doença. No estado latente, não há contágio da doença, que, antes do advento dos antibióticos, era tratada com repouso, alimentação reforçada e, preferencialmente, em lugares de clima seco e frio. No Brasil, a cidade de Campos de Jordão (SP) se tornou famosa por seus sanatórios.
Associação perigosa
A edição de setembro do periódico The Lancet Diabetes & Endocrinology publicou uma série de três artigos que chamam a atenção para um problema que tem se agravado nos últimos anos: a relação perigosa entre diabetes do tipo 2 e tuberculose. E esse binômio é ainda mais preocupante em países em desenvolvimento.
A relação pode parecer, à primeira vista, estranha. Mas é procedente: i) o diabetes aumenta os riscos de o portador da M. tuberculosis passar a manifestar os sintomas – ou seja, a doença se tornar ativa; ii) os resultados do tratamento da tuberculose são, em geral, piores em diabéticos; iii) estes, por sua vez, têm mais dificuldades de controlar as taxas de açúcar no sangue em relação a um diabético sem tuberculose. A chance de um diabético morrer ao longo do tratamento de tuberculose é cerca de duas vezes maior, se comparada com a de um não diabético.
O diabetes do tipo 2 é a forma da doença que leva à resistência do organismo à insulina (hormônio que ajuda a controlar os níveis de açúcar no sangue). A principal causa é a obesidade, e essa forma representa cerca de 90% dos casos da doença. A do tipo 1 é dita autoimune, ou seja, o sistema de defesa, por motivo ainda desconhecido, ataca o pâncreas, órgão onde a insulina é fabricada, e, assim, o hormônio deixa de ser produzido. Ambas têm impacto negativo na tuberculose, mas a principal responsável é a do tipo 2.
Um dos artigos indica que cerca de 15% dos casos de tuberculose em adultos no mundo já são associados ao diabetes, que afeta cerca de 380 milhões de pessoas no planeta atualmente.
Surgem cerca de 1 milhão de novos casos dessa associação por ano, mais de 40% deles na Índia e China. A África do Sul tem 70 mil casos do binômio, mas tem as taxas mais altas de tuberculose entre os países: 1 mil casos por 100 mil habitantes, três vezes maiores do que o segundo lugar, Burma (377 casos/100 mil).
Se a tendência atual se mantiver, a redução dos casos de tuberculose sofrerá um declínio entre 3% e 8% por volta de 2035, apontam os autores. A meta (ambiciosa) das autoridades de saúde mundiais é chegar àquele ano com uma redução de 90% na incidência de tuberculose no mundo. A associação com o diabetes compromete esse objetivo.
A Federação Internacional de Diabetes estima que, nos próximos 20 anos, o número de casos de diabetes possa subir 21%, o que corresponderia a uma prevalência (sem dúvida, espantosa) de aproximadamente 10% da população adulta planetária.
Em conjunto, tuberculose e diabetes têm tudo para reforçar o qualificativo ‘mal do século’, como a primeira era conhecida há cerca de 100 anos. Talvez, mais apropriado fosse ‘males do século’.
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 319 (outubro de 2014). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista.