O matemático polonês Mark Kac (1914-1984) dizia que há dois tipos de gênios: os ordinários e os mágicos. Um gênio ordinário é alguém que é como uma pessoa comum, mas muitas vezes melhor: é possível entender o processo de criação e o trabalho deles. Fica quase a impressão de que qualquer um de nós poderia ter feito o que eles fizeram, se fossemos muito melhores. Já os gênios mágicos são aqueles que nos deixam perplexos e, mesmo depois de entendermos seus resultados, não conseguimos entender o processo mental deles. O cinema adora gênios mágicos, o que frequentemente leva a exageros na tela grande.
Mas gênios mágicos existem, sim, e o matemático indiano Srinivasa Ramanujan (1887-1920) certamente foi um de seus representantes mais fascinantes. Sua história já tinha sido contada na excelente biografia The man who knew infinity (O homem que conheceu o infinito, em tradução livre), de Robert Kanigel, e foi levada para o cinema em 2015, com direção e roteiro de Matt Brown, e apresentada agora ao público brasileiro.
Curiosamente, ao contrário do que poderia se esperar de uma indústria fascinada com a ideia do gênio mágico e indomável, O homem que viu o infinito – como foi traduzido para o português – é surpreendentemente sóbrio. O tratamento dado ao personagem principal tem pequenas modificações, compreensíveis para uma adaptação cinematográfica.
Um exemplo ilustra bem esse ponto: em 1909, Ramanujan, aos 21 anos, casou-se com Srimathi Janaki, de apenas nove anos de idade. Ela permaneceu por mais três anos na casa de sua mãe, até atingir a puberdade, para, então, passar a viver com sua mãe e Ramanujan. Algo que era comum nessa época e nesse lugar desviaria o foco da história de Ramanujan como matemático. No filme, portanto, ela tem aproximadamente a mesma idade dele.
Precoce e talentoso
O talento de Ramanujan foi reconhecido muito cedo e ele se encontrou com a matemática formal aos 10 anos de idade. Aos 11, já tinha um domínio de nível universitário e, aos 13, já descobria resultados avançados em trigonometria. O interesse de Ramanujan, porém, era quase integralmente em matemática, o que fez com que sua vida acadêmica tivesse algumas complicações, como a perda de uma bolsa de estudos na universidade, devido a seu mau desempenho em disciplinas não matemáticas.
(imagem: divulgação)
Aos 16 anos, Ramanujan obteve uma cópia do livro, A synopsis of elementary results in pure and applied mathematics (Uma coleção de resultados elementares em matemática pura e aplicada) do matemático britânico G. S. Carr (1837-1914), uma série de resultados matemáticos que estudou meticulosamente e que teve uma profunda influência em sua maneira de fazer matemática.
Profundamente religioso, Ramanujan acreditava que sua capacidade matemática provinha de algo realmente divino, “uma equação para mim não tem significado, a menos que represente um pensamento de Deus”.
Em linhas gerais, a trajetória de Ramanujan é contada de maneira correta, especialmente o encontro com seu mentor matemático, G. H. Hardy (1877-1947). Ramanujan escreveu cartas a dois matemáticos em Cambridge, H. F. Baker (1866-1956) e E. W. Hobson (1856-1933), relatando alguns de seus resultados. As cartas voltaram sem comentários. Mais tarde, Hardy escreveu que, incialmente, pensou tratar-se de uma fraude, mas depois percebeu que, na verdade, os resultados faziam sentido: “Seus teoremas me derrotaram, nunca tinha visto nada como aquilo antes”. De maneira humilde, Hardy reconheceu que os teoremas “tinham que ser verdadeiros, pois se não fossem, ninguém teria a imaginação para inventá-los”. Seu colaborador de longa data, J. E. Littlewood (1885-1977), concordou que eram os resultados de um talento matemático de primeira grandeza.
Encontro virtuoso
O relacionamento com Hardy, aliás, é um dos episódios mais curiosos da história da matemática. Se, por um lado, Ramanujan era um matemático intuitivo, cujos resultados eram misteriosos até para ele mesmo, Hardy foi responsável por modernizar a matemática na Inglaterra.
Até o início do século 20, existia uma distância muito grande entre o tipo de matemática que se fazia na Europa, especialmente na França e na Alemanha, e aquela feita na Inglaterra, onde se praticava mais a chamada matemática aplicada, como a que estuda a dinâmica dos fluidos, do que a dita matemática pura – a matemática como fim em si. Hardy modernizou o currículo inglês, o que, de certa forma, foi o primeiro passo para colocar a Inglaterra na fronteira do conhecimento matemático – basta ver a qualidade dos trabalhos produzidos desde então naquele país e a quantidade de ganhadores da medalha Fields com nacionalidade inglesa ou que trabalham na Inglaterra.
O encontro entre Hardy e Ramanujan, aliás, é tratado de forma atípica para o cinema. Em primeiro lugar, valoriza o trabalho e a importância das demonstrações. Não basta ter apenas a intuição da verdade. Em matemática, devemos mostrar de forma convincente por que nossa intuição é correta. E há um caminho longo a ser percorrido até se chegar a esse ponto. Ou seja, o filme mostra o valor do trabalho.
Um segundo aspecto que surpreende é mostrar que pessoas como Ramanujan também erram. Em uma narrativa simplória, o gênio que erra é a prova de que, de fato, a genialidade era uma ilusão. Não neste caso. O erro mostra que até alguém com o talento notável de Ramanujan tem que seguir o árduo caminho do trabalho.
Esse encontro entre Hardy e Ramanujan, que Hardy, celibato convicto, descreveu como sendo “o único acontecimento romântico da minha vida”, apesar de breve, mostra a importância da colaboração e do trabalho formal. Durou pouco menos de cinco anos, mas rendeu frutos preciosos para a teoria de números, e transformou Ramanujan em um matemático real e de importância histórica. Mérito tanto de Ramanujan quanto de Hardy.
Por tratar a história notável de Ramanujan com sobriedade, certamente consequência de ter dois excelentes matemáticos como consultores – o nipo-americano Ken Ono e o canadense-americano Manjul Bhargava, este último ganhador da medalha Fields –, temos uma narrativa mais realista e talvez menos impressionante do que a típica história de genialidade hollywoodiana. Mas, neste caso, o filme acertou em cheio: a mágica do cinema mostrou de forma sóbria que gênios mágicos também são humanos.
Marco Moriconi
Instituto de Física,
Universidade Federal Fluminense