Há mais de uma década, esforços vêm sendo realizados para reunir evidências científicas sobre a influência do ser humano sobre a Terra e seus ecossistemas. Tudo indica que já estamos vivendo uma nova época na história geológica do planeta: o Antropoceno. A sua formalização tem data marcada para meados de 2016, e a comunidade científica está mobilizada para dar esse importante passo.
No início da década de 2000, o termo Antropoceno foi sugerido pelo químico holandês Paul Crutzen, ganhador do prêmio Nobel de Química em 1995, para descrever a época ou intervalo de tempo mais recente na escala geológica da Terra. O termo reflete a profunda e contínua influência das atividades humanas sobre o planeta – que tem 4,6 bilhões de anos – e seus compartimentos físicos, geológicos e biológicos.
Na escala geológica, o Antropoceno – caso fosse formalmente incluído – sucederia a época atual, denominada Holoceno, que teve início há 11,7 mil anos, depois do último período glacial ou Idade do Gelo – que, por sua vez, está inserido no período Quaternário da Era Cenozoica, os quais seriam mantidos inalterados. O termo e suas inúmeras implicações científicas e de caráter social, político e/ou econômico foram amplamente discutidos nos últimos 15 anos, gerando centenas de artigos publicados em importantes revistas científicas, bem como outras centenas de documentos de cunho científico e informativo divulgados em diferentes meios de comunicação (ver ‘Antropoceno: a época da humanidade?’, em CH 283). Atualmente, talvez pela aproximação de um importante congresso a se realizar na Cidade do Cabo (África do Sul) neste ano, o debate sobre a oficialização dessa ‘nova época’ se intensificou, mobilizando a comunidade científica envolvida com o tema.
Para explicar melhor, vamos voltar um pouco no tempo. No final da década de 2000, a União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS, na sigla em inglês), importante órgão científico da área, sinalizou a possibilidade de formalização do Antropoceno caso, naturalmente, fossem cumpridos os ‘prérequisitos’ estabelecidos pela comunidade científica – neste caso, composta principalmente por geólogos. Para ser reconhecido como uma unidade, ou intervalo de tempo geológico, o Antropoceno deve apresentar um início definido – que é o tópico mais discutido atualmente; deve ocorrer de forma sincrônica ao redor do planeta; e precisa apresentar evidências (químicas, físicas e/ou biológicas, como os fósseis) passíveis de serem monitoradas e que reflitam, claramente, os limites estratigráficos – ou seja, dos estratos ou camadas de rochas que formam a crosta terrestre – entre os intervalos de tempo adjacentes, assim como ocorre em outras unidades já estabelecidas na escala geológica.
Para que esses pré-requisitos fossem estudados a fundo, foi criado o Grupo de Trabalho do Antropoceno (AWG, na sigla em inglês), que está formalmente ligado à Comissão Internacional de Estratigrafia. Naquela época, foi definido um prazo para a atuação do grupo e, ao final desse período, a IUGS ‘bateria o martelo’ quanto à oficialização do Antropoceno. Esse prazo termina em agosto deste ano, durante o Congresso Internacional de Geologia na Cidade do Cabo.
Datas propostas
Inicialmente, Crutzen sugeriu que o Antropoceno teria começado junto com a Revolução Industrial e a invenção da máquina a vapor no final do século 18. Nessa época, as concentrações de gás carbônico e metano começaram a aumentar (em comparação aos níveis encontrados no Holoceno), e a população atingiu a marca de 1 bilhão de habitantes. Alguns pesquisadores acreditam que o Antropoceno começou antes mesmo da Revolução Industrial, há alguns milhares de anos, com os primeiros impactos do homem sobre a Terra – incluindo, por exemplo, a caça e o desmatamento para a expansão da agricultura. Outros pesquisadores sugerem ainda que o Antropoceno teve início na metade do século 20, período por eles denominado de ‘Grande aceleração’, quando ocorreram profundas mudanças causadas por atividades antrópicas em um período de tempo relativamente curto.
Liderados pelo geólogo inglês Jan Zalasiewicz, cientistas das mais diversas áreas do conhecimento (paleontólogos, biólogos, botânicos, oceanógrafos, meteorologistas e cientistas sociais), muitos deles membros do Grupo de Trabalho do Antropoceno, foram além: definiram o ano de 1945 como o início da nova época. A data escolhida representa a primeira explosão de uma bomba nuclear na superfície da Terra (em Alamogordo, no Novo México (EUA), em 16 de julho de 1945). Dessa data até 1988, foram detonadas outras bombas nucleares em uma média de uma a cada 9,6 dias, incluindo as de Hiroshima e Nagasaki, deixando marcas na superfície da crosta terrestre.
De ‘pernas para o ar’
A proximidade do Congresso Internacional de Geologia já vinha movimentando a comunidade científica envolvida na formalização do Antropoceno. Porém, um artigo recentemente publicado na Nature lançou novos questionamentos. O artigo sugere novas datas para marcar o início da nova época: os anos de 1610 e 1964. O Grupo de Trabalho do Antropoceno e outros pesquisadores, de forma independente, logo se manifestaram por meio da publicação de outros textos, discordando das datas sugeridas por uma série de razões, todas baseadas em evidências científicas levantadas nos últimos anos.
A data de 1610, por exemplo, foi escolhida com base em um ‘leve e curto’ declínio na concentração de gás carbônico atmosférico medido em testemunhos de gelo (tipo de amostra coletada ao longo da camada de gelo; muitas vezes, com vários metros de profundidade) da Antártida. O declínio, entretanto, pode ser observado em outros momentos durante o Holoceno, não sendo, portanto, evidência suficiente para indicar a influência de atividades humanas. Já 1964 foi selecionado, entre outros motivos, com base nas altas concentrações atmosféricas de um isótopo (elemento químico com o mesmo número de prótons, mas diferente número de nêutrons) de carbono, registradas nos anéis de crescimento de pinhos em um parque da Polônia. Nesse caso, a madeira do pinho não foi considerada um ‘material geológico’ propriamente dito, como são as rochas, os sedimentos marinhos e o gelo.
Até meados deste ano, e possivelmente pelas próximas décadas, a comunidade científica tem grandes desafios. Um deles é indicar, com precisão, se e quando começou o Antropoceno, sinalizando de forma definitiva a magnitude da influência dos humanos sobre a Terra. Muitos outros desafios virão, pois os problemas decorrentes dessa ocupação, muitas vezes desordenada, podem estar apenas começando.
Juliana Assunção Ivar do Sul
Anthropocene Working Group e
Associação de Pesquisadores em início de Carreira para o Mar e os Polos (APECs-Brasil)