A nanotecnologia baseia-se na investigação e manipulação da matéria na escala dos bilionésimos de metro – ou seja, dos nanômetros –, emprestando esforços de disciplinas vistas, até há pouco tempo, como separadas: biologia, física, química e ciências dos materiais.
Da comunidade científica ao grande público, diversos grupos, quando questionados sobre a história da nanotecnologia, parecem se contentar com poucas informações, que não variam muito de sítio para sítio da internet – caso emblemático é o do chamado Instituto Foresight.
Vejamos, então, alguns dos fatos mais disseminados sobre as supostas origens da nanotecnologia.
O marco fundador da área teria sido a palestra proferida, ainda em 1959, pelo famoso físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988), ‘Há muito espaço lá embaixo’ – voltaremos ao assunto.
Já a palavra nanotecnologia foi cunhada, em 1974, pelo pesquisador japonês Norio Taniguchi (1912-1999). A ‘paternidade’ da tecnologia em si seria do primeiro doutor na área, o engenheiro norte-americano Eric Drexler, autor do livro Engines of creation: the coming era of nanotechnology (Engenhos da criação: o advento da era da nanotecnologia), de 1986, importante na disseminação dessa nova tecnologia para o grande público.
Naquela década, a descoberta fundamental das moléculas com 60 átomos de carbono, os fulerenos, e a invenção dos microscópios de varredura de prova – entre eles, o microscópio de força atômica, com o qual a ‘manipulação átomo a átomo’ passou a ser, de fato, possível – abririam as portas para essa nova era.
Além dessa nanotecnologia ‘moderna’, haveria também uma nanotecnologia ‘antiga’, remontando às nanopartículas de ouro e prata, dando características especiais a vidros produzidos na Roma antiga. Evidentemente, aqueles romanos não tinham ideia de que se tratava de partículas coloidais, que, hoje, são chamadas nanopartículas e – fato raramente lembrado nas várias histórias da nanotecnologia – estudadas sistematicamente pelo físico inglês Michael Faraday (1791-1867), em meados do século 19.
Espaço lá embaixo
Contar a história desse modo nada acrescenta à compreensão da nanotecnologia como uma atividade humana de pesquisa e inovação, com importantes repercussões sociais. No entanto, esse pequeno conjunto de, digamos, notas de rodapé fornece excelentes pontos de partida para ir um pouco mais a fundo e construir um olhar diferente sobre o tema.
Comecemos pela palestra de Feynman – Nobel de Física de 1965 –, adormecida por mais de 20 anos e transformada em uma profecia por, entre outros, Drexler – afinal, nada melhor do que um oráculo renomado para fomentar uma proposta supostamente nova.
O propósito da palestra aparecia logo no começo: “Quero falar sobre o problema de manipular e controlar as coisas na escala atômica”. E uma meta era anunciada em seguida: “Por que não podemos escrever os 24 volumes inteiros da Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete”? Para responder a essa pergunta, Feynman encadeou uma série de elaborações conceituais que hoje soam, de fato, proféticas – e, à época, eram, sem dúvida, interessantes.
Mas seriam assim tão visionárias?
Perscrutando o contexto da época, o leitor pode chegar às próprias conclusões, lembrando que Feynman não cita resultados científicos em sua palestra, mas certamente era uma pessoa muito bem informada.
O que se passava, então? Em 1958, foi desenvolvida a prova de conceito do circuito integrado (CI), rapidamente reconhecido como a primeira rota eficiente para miniaturização da eletrônica em escala sem precedentes. O físico e engenheiro norte-americano Jack Kilby (1923- 2005) – Nobel de Física de 2000 pela invenção do CI – teria anotado, em seu caderno de laboratório, em 1958: “Miniaturização extrema de muitos circuitos elétricos pode ser alcançada, fazendo resistores, capacitores, transistores e diodos em uma única fatia de silício”.
A palavra ‘extrema’ abria as portas para a imaginação em uma época em que competições de miniaturização já eram moda – e isso antes mesmo do prêmio oferecido por Feynman em sua palestra para quem construísse o menor motor do mundo. Assim, a profecia de Feynman não era desprovida de pistas claras de que poderia ser realizada.
A palestra de Feynman tampouco influenciou diretamente o desenvolvimento da nanotecnologia, como aponta o antropólogo cultural norte-americano Chris Toumey, em seu artigo ‘Lendo Feynman no contexto da nanotecnologia’. Nele, Toumey escreve que as reais motivações de Feynman – frequentemente associadas à antecipação da nanotecnologia – vêm sendo discutidas também por historiadores da física. Mesmo assim, a palestra abriu-se para a fama, chancelada por milhares de citações.
Mas seria possível um artigo praticamente desconhecido hoje ter tido, de fato, forte influência direta no desenvolvimento da nanotecnologia?
Peter Schulz
Faculdade de Ciências Aplicadas
Universidade Estadual de Campinas (SP)