No currículo Lattes de José Arthur Giannotti, há mais textos publicados em jornais e revistas do que artigos acadêmicos e livros. Também constam na página apenas cinco orientações de mestrado e doutorado. Não obstante, Giannotti é considerado um dos maiores filósofos brasileiros: foi presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) por 11 anos, é professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) desde 1954, já recebeu o prêmio Anísio Teixeira do Ministério da Educação e é membro da Ordem Nacional do Mérito Científico, da Academia Brasileira de Letras (ABC).
Por que, então, o currículo Lattes de Giannotti é mais curto e simples que o de muitos estudantes de doutorado brasileiros, se ele já orientou um sem-número de alunos e publicou dezenas de artigos e livros acadêmicos? “Nunca vi meu Lattes. Acho tão chato…”, rebate ele. O desdém do filósofo em relação às formalidades da academia e à opinião alheia reflete em certa medida sua preocupação quase exclusiva em refletir, escrever, debater e provocar.
Mas se engana quem pensa que, por consequência, Giannotti deseja ‘popularizar’ a filosofia. Considerado “obscuro” por muitos, Giannotti não gostaria de ser diferente. “De que adianta influenciar [pessoas] com o pensamento pela metade?”, questiona ele. Giannotti prefere que poucos entendam suas ideias, mas que o façam em sua completude: “Prefiro ser obscuro do que simplesmente chato”.
Obscuro ou não, Giannotti é, sem dúvida, denso e bem-humorado. Nesta entrevista, sua risada retumbante se intercala com provocações, críticas, reflexões e paciência para explicar conceitos complexos, mas também com momentos de doçura (se é que ele permite ser descrito com esse termo). Doçura visível quando Giannotti afirma que gostaria de ser visto de forma mais pacífica por seus pares; quando convida a repórter para conhecer a jabuticabeira no quintal de sua casa em São Paulo; quando comenta em voz baixa que a poetisa Lupe Cotrim, sua primeira esposa, era “muito, muito bonita”.
A incursão de Giannotti pela filosofia começou cedo: aos 15 anos, já se interessava pelo tema. Antes dos 18, leu Paideia: a formação do homem grego, de Werner Jaeger, que o iniciou na cultura grega e clássica. Seguiu o exemplo dos filósofos peripatéticos da Grécia antiga e, durante muitos anos, refletia e preparava suas aulas de filosofia da lógica na USP caminhando de casa à universidade. Foi com a lógica, aliás, que ele mergulhou na filosofia também profissionalmente: seu doutorado na França terminou com uma tese sobre Stuart Mill, filósofo e economista de referência nesse campo.
Fato curioso e ambíguo como várias facetas de Giannotti, seu aprofundamento em lógica coexistiu com uma dislexia que o fez ser reprovado ainda no colégio. “Sou tão disléxico que fiquei famoso na universidade porque escrevia no quadro ‘dada a sequência de números pares 1, 3, 5, 7…’”, lembra ele.
Mas foi com Karl Marx que Giannotti fez fama como filósofo. Seu primeiro livro, Origens da dialética do trabalho (1966), teve o jovem Marx como objeto de reflexão, inspirado pelos debates sobre o pensador alemão que realizava com Fernando Novais, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e outros célebres colegas. Sua amizade com Fernando Henrique, aliás, foi o mais próximo que ele chegou da prática política. “Não seria eleito nem para síndico de prédio”, comenta, sobre o motivo de nunca ter exercido nenhum cargo na política.
De Marx, Giannotti passou a Ludwig Wittgenstein e à filosofia da linguagem. Uma passagem estranha para muitos, mas que parece simples e intuitiva quando explicada pelo próprio autor. Recentemente, ele publicou Lições de filosofia primeira (Cia. das Letras, 2011) e Notícias no espelho (Publifolha, 2011). Neste último, uma coletânea de artigos publicados na Folha de S. Paulo, o filósofo mostra sua verve de intelectual público: pesca algum fato ou fenômeno da atualidade e explora os aspectos filosóficos que dele emergem – ou que faz emergir. “Intelectual é o sujeito que puxa tapetes de tudo o que é estável.”
Nesta entrevista, ele puxa tapetes – da repórter, do leitor, de políticos e, principalmente, do senso comum.
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Renato Lessa
Instituto Ciência Hoje e
Departamento de Ciência Política/ UFF
Isabela Fraga
Especial para Ciência Hoje/ RJ