Em 3 de julho de 1945, 10 cientistas alemães capturados pelos Aliados tornam-se cativos em Farm Hall, casa de campo perto de Cambridge (Reino Unido). Não sabem, mas suas conversas estão sendo gravadas. Lá, cerca de um mês depois, ouvem, pelo rádio, o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão. A reação deles a esses eventos é o mote da recém-lançada peça Farm Hall, do norte-americano David C. Cassidy, um dos mais renomados historiadores da ciência da atualidade e autor de uma biografia clássica (Uncertainty, 1993) do físico alemão Werner Heisenberg, Nobel de 1932.
Catedrático da Universidade Hofstra (EUA), Cassidy escolheu como personagens apenas cinco dos cativos: os teóricos Heisenberg (1901-1976) e Carl Friderich von Weizsäcker (1912-2007), e os experimentais Walther Gerlach (1889-1979), Kurt Diebner (1905-1964) e Otto Hahn (1879-1968).
Três outras personagens (um físico, um militar e uma mulher) têm papéis complementares. Com a peça, Cassidy discute ciência, ideologia, colaboração com o Estado, conflito de classes e programa nuclear alemão no regime nazista.
Em julho, Farm Hall – a cujo roteiro a CH teve acesso exclusivo – será apresentada na cidade de Nova York (EUA), em um festival internacional de teatro. E ainda este ano, estará em Santiago (Chile) e na Cidade do México – e bem que poderia ser montada no Brasil.
Ciência Hoje: As gravações feitas em Farm Hall se tornaram públicas em 1992. Por que o senhor decidiu escrever uma peça sobre o tema mais de 20 anos depois?
Cassidy: De imediato, reconhecia possibilidade de uma peça naquele material, mas, ao mesmo tempo, fui atraído pelas controvérsias históricas relativas àqueles relatórios. E, depois, veio [a peça] Copenhagen, d[o britânico] Michael Frayn, [que também tem como tema a bomba atômica]. Cerca de 15 anos mais tarde, ninguém havia criado uma peça sobre o assunto.
Em 2007, um colega sugeriu que eu deveria me incumbir dessa tarefa. E, como eu estava entre um projeto e outro, decidi aceitar o desafio, e o resultado é Farm Hall.
O que foi mais difícil? Construir as personagens ou ter que escolher – ou excluir – conceitos científicos?
Já que esta é minha primeira peça, todos os aspectos foram difíceis para mim. Ela foi escrita para o grande público; então, não pude entrar em aspectos técnicos da física. Mesmo assim, fui capaz de apresentar uma boa dose de física em uma forma acessível para não físicos.
Como foi o conflito entre o historiador da ciência e o escritor?
Esse foi um aspecto muito difícil da peça. Ao final, percebi que escrever uma peça e escrever sobre história da ciência são gêneros muito diferentes. Cada um tem seus objetivos, requisitos e seu público. Como um ator me disse: “É teatro, e não história!”
Por que o senhor escolheu aquelas cinco personagens entre as 10 pessoas cativas?
Eu não poderia administrar 10 personagens em uma peça curta; então, eu as reduzi a cinco figuras-chave – algumas com características das que foram deixadas de fora. As cinco escolhidas estavam envolvidas com os principais assuntos que eu queria apresentar na peça. Além disso, uma peça requer tensão e conflito, e eu escolhi aquelas cinco para esse propósito. As personagens se dividem em duas facções, representando dois esforços diferentes [na tentativa de avançar] na fissão [divisão do núcleo atômico]: Heisenberg e Weizsäcker versus Gerlach e Diebner.
Hahn é uma figura independente, como o foi na vida real. Rittner, o [militar] supervisor britânico, posiciona-se acima de todas elas.
A peça parece propositalmente não responder a uma questão crucial: o programa nuclear nazista foi deliberadamente sabotado por cientistas alemães?
Acho que está bem claro que eles não sabotaram o projeto, apesar de Heisenberg ter dito que ele “não estava 100% ansioso para fazer isso”. Em vez disso, as personagens indicam que o projeto falhou por várias razões: porque elas não puderam trabalhar em conjunto; as teorias de Heisenberg fizeram a bomba parecer algo distante, fora do alcance; o bombardeio de cidades e fábricas interrompeu o trabalho deles; a quantidade limitada de água pesada [que absorve a energia gerada pela fissão] atrasou a pesquisa deles; a baixa posição deles na política científica do Terceiro Reich.
Na peça, as falas de Heisenberg fazem-no parecer dúbio, e isso reforça rumores sobre o papel que ele haveria desempenhado nos 12 anos do regime nazista. Qual foi a verdadeira relação dele com o Estado e a ideologia nazistas?
Ele foi uma figura contraditória, como foi a maioria dos acadêmicos não nazistas, incluindo aqueles [na peça] Farm Hall – exceção, talvez, para Diebner. Vemos [na peça] que Heisenberg não era membro do partido e que tentou trabalhar com o sistema para salvar a ciência e os cientistas da Alemanha. Mas foi sufocado pela ditadura e, no final, falhou no âmbito pessoal e profissional.