Com o verão, uma nova temporada de dengue é esperada, com todos os agravantes decorrentes das altas temperaturas e muitas chuvas que mais um El Niño prenuncia. Algumas vacinas contra o vírus da dengue estão em desenvolvimento, uma das quais, inclusive, com pedido de liberação comercial no país tramitando em regime de urgência [atualização: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a comercialização da vacina, produzida por um laboratório francês]. No entanto, mesmo que a vacina fosse 100% eficaz e estivesse prontamente disponível para todos – o que não é o caso –, não deveríamos nos sentir tranquilos, nem seguros. Isso porque o mosquito da dengue também transmite outros vírus que circulam atualmente no Brasil, como o chikungunya e o zika, que causam grandes danos à saúde e para os quais não há vacina ou tratamento específico. Portanto, o cuidado para impedir que o Aedes aegypti prolifere continua sendo uma prioridade.
Cresce no país o entendimento da importância de que os potenciais criadouros de Aedes aegypti sejam eliminados. Apesar disso, o controle químico ainda tem papel de destaque no combate ao mosquito. Na prática, o uso de inseticidas é intensificado principalmente em situações de epidemia. E a principal consequência do uso indiscriminado, exagerado, de inseticidas é a seleção de mosquitos resistentes, que permanecem vivos e ativos.
São poucos os compostos químicos disponíveis para combater mosquitos. Muitos anos são necessários para que um novo produto seja desenvolvido – e muito pouco tempo para que este mesmo produto seja perdido por causa da disseminação de resistência nas populações de vetores, em função de seu uso excessivo. Com isso, hoje, as opções de novos produtos estão praticamente esgotadas. E em muitas áreas foi preciso parar de usar inseticidas convencionais.
Soluções matemáticas
É aqui que a matemática entra para ajudar a encontrar soluções. Artigo publicado em maio deste ano na revista científica Plos One por dois de nós (Schechtman e Souza) traz um modelo que permite entender o que acontece com uma população de Aedes aegypti resistente quando o inseticida deixa de ser aplicado. A pergunta inicial foi, aparentemente, simples: se a resistência a inseticidas está instalada em uma população do mosquito, a tal ponto que seu uso não se justifique mais, em quanto tempo, depois de interrompido o emprego do produto, a população volta ao seu estado original, suscetível ao inseticida?
Várias peculiaridades da dinâmica populacional do Aedes aegypti foram levadas em conta. A abundância desse vetor, ditada em grande parte pelo clima, notadamente a temperatura e as chuvas, é maior no verão. Tal sazonalidade foi contemplada no trabalho com fórmulas adaptadas de um modelo anterior também elaborado por pesquisadores brasileiros e usado para estudar o impacto de inseticidas na quantidade de mosquitos e em seu perfil de resistência. Aliás, o Brasil tem hoje, na academia, massa crítica significativa na modelagem matemática de questões epidemiológicas.
Como há ampla gama de cenários possíveis, dois outros parâmetros foram incluídos no modelo: o primeiro foi o percentual de indivíduos resistentes na população. Para isso, considerou-se que a resistência tem base genética e deve-se a um único fator. Embora em muitas situações a resistência a inseticidas dependa de vários fatores, há casos em que está associada a apenas um gene. Exemplo disso é a resistência aos inseticidas do grupo dos piretroides, até recentemente empregados contra mosquitos adultos em larga escala no país (o chamado fumacê). Portanto, a opção pela simplificação do modelo, nesse caso, tem correlato no mundo real.
O segundo parâmetro, chamado ‘custo da resistência’, foi um diferencial importante em relação a modelos prévios. Partiu-se do pressuposto de que a resistência a inseticidas prejudica a viabilidade do mosquito resistente. Isso porque a eliminação do inseticida, tóxico para o mosquito, requer que parte da energia usada em seu metabolismo geral seja desviada, o que faz com que alguns processos necessários para o bom funcionamento de seu organismo se tornem mais lentos ou incompletos. Portanto, os mosquitos resistentes só estão em vantagem na população quando o inseticida é utilizado.
Na prática, há uma série de exemplos de que isso ocorre com populações de Aedes aegypti e mesmo de outros insetos. Na presença do inseticida, indivíduos resistentes são selecionados, em detrimento daqueles suscetíveis. No entanto, quando as aplicações são interrompidas, como foi o caso dos cenários avaliados no trabalho da Plos One, não só sua vantagem desaparece, como também o ‘custo de ser resistente’ passa a ser uma desvantagem. Esse custo pode se traduzir em desenvolvimento mais lento (e, portanto, maior exposição a predadores ou à eliminação dos criadouros), menor produção de descendentes ou longevidade reduzida, entre outros.
Recuperação da suscetibilidade
Por meio de um longo processo de simulações matemáticas, os autores avaliaram por quanto tempo é preciso parar de aplicar inseticida em uma área cujos mosquitos estão resistentes até que se possa utilizá-lo de novo com eficácia. Esse tempo foi calculado levando-se em conta diversos percentuais de indivíduos resistentes na população e vários ‘custos da resistência’ – para os quais foram atribuídos diferentes valores em função dos graus de viabilidade do mosquito (mosquitos menos viáveis, por exemplo, têm ‘custo’ mais alto). Como esperado, constatou-se que quanto maior o percentual de indivíduos resistentes, mais tempo sem inseticida é necessário para a população voltar a ser suscetível. Por outro lado, quanto maior o custo da resistência, mais rapidamente a condição suscetível é alcançada.
A surpresa dessas simulações ocorreu quando foram usados dados reais e atuais do Brasil. Hoje, são conhecidos os percentuais de mosquitos resistentes a piretroides em várias populações brasileiras de Aedes aegypti – e são muito altos em alguns casos. A associação desses percentuais com os diversos ‘custos’ inseridos no modelo mostrou que, em muitas situações, a resistência a inseticidas já está tão amplamente disseminada que a reversão dessa característica pode demorar várias décadas, mesmo se os mosquitos resistentes forem pouco viáveis (‘custo’ alto). Esses dados revelam um panorama preocupante em relação ao controle por inseticidas quando a resistência está instalada.
Atualmente, algumas alternativas para reduzir ou substituir as populações de mosquito estão em teste. Em uma delas, são liberados machos transgênicos e estéreis, que inseminam as fêmeas e inviabilizam sua prole. Outra abordagem libera mosquitos infectados com uma bactéria (Wolbachia) que reduz a capacidade do inseto de transmitir o vírus da dengue. No entanto, essas estratégias apresentam algumas particularidades que não foram consideradas no modelo aqui descrito.
A questão que se coloca então é: como controlar as populações de mosquitos de forma sustentável? Nesse contexto, fica evidente a relevância do controle ‘mecânico’, que elimina tanto indivíduos resistentes quanto suscetíveis aos inseticidas. Em suma, a remoção dos criadouros contribui para que os inseticidas sejam eficientes, se usados de forma racional e complementar.
Denise valle
Instituto Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz
Helio Schechtman
Programa de Computação Científica
Fundação Oswaldo Cruz
Max Souza
Departamento de Matemática Aplicada
Universidade Federal Fluminense