Decorridos 60 anos desde a morte de Jorge de Lima, em 1953, as editoras Jatobá e Cosac Naify uniram-se, no fim de 2013, em justa homenagem ao poeta. Cuidadosamente organizada por Fábio de Souza Andrade, que também assina um esclarecedor posfácio, a edição mais recente de Invenção de Orfeu inclui, além de ensaios críticos, uma série de documentos comentados pelo organizador.
Em acordo com seu autor, o texto deve ser lido como “biografia épica, biografia total…, biografia com sondagens”. De fato, no longo poema, o leitor pode buscar um percurso biográfico e associá-lo à trajetória mítica de Orfeu, marcada pela magia da arte, pelo amor, pelo contato com a morte e pelo regresso a uma vida centrada no canto doloroso da perda. Apesar da descontinuidade, da fragmentação e da superposição de sentidos, é possível detectar os fios que expõem uma formação.
Jorge de Lima dá notícia de como chegou a ser quem é: o inventor de Orfeu, persona lírica que fala ao longo de 10 Cantos. O percurso formativo é feito de ciclos que se enovelam em torno de alguns temas e de imagens que se repetem. A subjetividade que fala parece mesmo totalizar outros eus. À medida que se posicionam em relação ao conjunto de temas e imagens obsessivas, essas personas promovem repetições, tornando a estrutura bastante complexa.
Principalmente no Canto I, o poeta dá conta do espaço que, abrigando Orfeu, também lhe confere forma. Trata-se do próprio poema, mas também de uma pátria. O escritor evoca a história do Brasil, com seu problemático passado colonial e sua mitologia romântica. À imagem da terra vista como ilha prodigiosa, superpõe-se a noção da poesia, centelha a ser buscada em um oceano de linguagem.
Nascido na pequena cidade de União dos Palmares, em Alagoas, Jorge de Lima ali viveu até os sete anos. Foi para Maceió com 10 anos. Depois, iniciou na Bahia o curso de medicina, que seria concluído no Rio de Janeiro, onde residiu desde 1930 até a morte. Presentes nas biografias de muitos intelectuais de sua geração, as migrações singularizam-se no contexto dessa ‘biografia total’. Em seus poemas, os lugares da infância evocam desertos bíblicos e as paisagens amenas de Virgílio.
Existência, fantasia, símbolos
Além do espaço, é focalizado um mundo interior. O poeta mescla existência, fantasia ativa e vasta herança de símbolos para compor a intimidade do seu tardio Orfeu. Minuciosa memória dos sentidos destaca os primeiros contatos da pele, as vivências do terror noturno com suas alucinações, as primeiras impressões sexuais. A esses elementos, acrescentam-se a aquisição de linguagem e tomada de consciência do dom poético, recebido com orgulho e temor. No entanto, a vida vivida não se descola das crenças, dos ritos, dos mitos e da bagagem de leituras.
Sob o peso da culpa e da dor, o afastamento do mundo tradicional equivale, na emoção, ao parricídio; por isso, a imagem do pai morto surge associada à lembrança dos irmãos Karamazov. O impacto causado pela leitura do episódio de Inês de Castro, em Os Lusíadas, é destacado no Canto IX, quando o poeta focaliza a figura da mulher morta e, para sempre, viva.
O leitor perceberá que, além das paisagens da infância, há uma terra habitada pelo Mal, lugar de queda e danação. A passagem do tempo promove desgastes, de modo que a invenção da persona atual deve-se ao acúmulo de dissoluções anteriores. Revendo esse processo, Jorge de Lima também revê os deslocamentos de suas opções estéticas. Há referências a uma busca tateante de música, à atividade circular da memória, à emersão de um compromisso com Cristo – que aparece predominantemente com a face da vítima. Unida à de Orfeu, ela sugere um rosto para o homem do século 20, suportando a história como calvário e inferno.
Centrado no “homem que não consegue sossegar”, o tecido biográfico destaca o incessante movimento da imaginação personificada no ‘menino’. No canto X, entra em dominância o tom profético.
Mas a ‘biografia total’ é também ‘biografia épica’. Ao expor suas experiências, Jorge de Lima evoca, com aproximações e contrastes, a aventura marítima exaltada por Camões. A essa principal lembrança aderem-se outras. Invenção de Orfeu, porém, canta, porém, uma subjetividade ferida por despojamento e solidão. Moderna, sua navegação dá-se a bordo de um barco ébrio e seu heroísmo cede ao fracasso traduzido por cansaço e queda.
No chão onde cai, o poeta encontra, na voz igualmente ferida de Cristo, um único amparo: “E desabando-me eis que ainda escutei/ aquela voz tão grave e tão divina:/ fui teu céu; e teu chão sempre serei”. É preciso então lembrar que Invenção de Orfeu é “biografia com sondagens”. Nesse caso, a vida – no mundo e na linguagem – constitui sondagem em torno da Verdade e do Bem. Rejeitando o materialismo, o exercício volta-se, sobretudo, para o oceano íntimo, para a alma, ilha inacessível aos poderes dissolventes que, segundo o poeta, governaram seu tempo e seu mundo.
Mirella Márcia Longo
Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras
Universidade Federal da Bahia
Texto originalmente publicado no sobreCultura 16 (julho de 2014).