E não é que perturbaram o sono eterno do primeiro imperador do Brasil? Os restos mortais de Dom Pedro I (1798-1834) foram exumados. E, com eles, também saíram da cripta os corpos de suas duas esposas: as imperatrizes Leopoldina de Habsburgo (1797-1826) e Amélia de Leuchtenberg (1812-1873).

Foi um delicado processo; lembrou até uma operação militar. Um sigiloso esquema de segurança foi arquitetado para o transporte dos esquifes desde o local onde estavam – o Monumento à Independência, na capital paulista – até o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Lá foram submetidos, entre fevereiro e setembro de 2012, a exames de tomografia, radiologia e ressonância magnética.

“O principal objetivo da exumação foi garantir a preservação dos remanescentes humanos e dos artefatos que se encontravam nas urnas funerárias”, diz a arqueóloga Valdirene Ambiel – o trabalho é parte de seu mestrado, concluído em fevereiro no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. “Um dado que sempre me preocupou foi a umidade presente na capela imperial, no interior do monumento onde jazem os corpos”, diz a pesquisadora.

“O principal objetivo da exumação foi garantir a preservação dos remanescentes humanos e dos artefatos que se encontravam nas urnas funerárias”

Quando chove, acumula água. As paredes são preenchidas com terra. Há infiltrações. Não que isso incomode o descanso fúnebre, mas, considerando a preservação desse patrimônio histórico, Ambiel constatou que há muito a se melhorar na infraestrutura do sepulcro da realeza.

Trabalharam nessa empreitada mais de uma dúzia de cientistas das mais variadas áreas – da história à biologia, da arqueologia à física. “Mobilização talvez inédita na pesquisa histórica e arqueológica no Brasil”, comenta o historiador Maurício Ferreira Jr., diretor do Museu Imperial, em Petrópolis (RJ).

Dom Pedro I: esclarecimentos e causos

Por desastrado que pareça, o paradeiro funerário de Dom Pedro I era um tópico não muito bem resolvido. Alguns diziam que ele fora cremado. Outros, que seus restos estariam em qualquer outro lugar que não no Monumento à Independência. A exumação liderada por Ambiel pôs fim à contenda. Dom Pedro I de fato está lá, em carne e osso (no caso, só em osso). Detalhe: seu coração – como já se sabia – está preservado em um mausoléu na Igreja da Lapa, na cidade do Porto, em Portugal.

Duas foram as confirmações obtidas com a exumação do monarca. Primeiro: sua estatura era de algo entre 1,66m e 1,73m. “Diziam que ele era baixinho”, brinca Ambiel. “Mas essa é uma altura bem razoável para a época.” Segundo: ele teve quatro costelas quebradas, o que provavelmente prejudicou o pulmão e agravou seu quadro de tuberculose – doença que o levou à morte aos 36 anos. Conta-se que ele caiu do cavalo, em 1823. E, em 1829, capotou uma carruagem que ele mesmo guiava – faltou-lhe maestria na direção.

Tomografia de Dom Pedro I
Tomografia de Dom Pedro I. Em seu caixão foram encontradas medalhas, comendas, botões e abotoaduras, além de fragmentos de tecido e o salto de sua bota. Parte dessas peças deve ser doada ao Museu Imperial de Petrópolis. (foto: Faculdade de Medicina da USP)

Dom Pedro I foi enterrado com vestes de general. Em seu caixão foram encontradas medalhas, comendas, botões e abotoaduras, além de fragmentos de tecido e o salto de sua bota. “O material foi higienizado e acondicionado; está agora no Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo.” A arqueóloga pretende doar algumas das peças ao Museu Imperial de Petrópolis – mas para isso aguarda permissão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Leopoldina: abandono e ciência

Essa austríaca mal compreendida foi a primeira esposa de Dom Pedro I. Portanto, a primeira imperatriz do Brasil. Casaram-se por correspondência – como era comum aos aristocratas da época – e conheceram-se meses depois. De acordo com a historiadora Mary Del Priore, foi uma relação conturbada, “uma história de maus-tratos e solidão”, escreve em seu último livro, A carne e o sangue (editora Rocco, 2012).

Entre as fofocas imperiais, conta-se que Dom Pedro I teria empurrado Leopoldina da escada com um pontapé – quando ela estava grávida. Na queda, segundo alguns, a imperatriz teria fraturado o fêmur. E também perdido o bebê. “Mas, ao contrário do que registram certos livros de história, a exumação não aponta nenhuma fratura no fêmur”, garante Ambiel. “É bom deixar claro que esse episódio é uma lenda.” Boletins médicos de 1826 sugerem que o feto tenha morrido em função de um aborto; e não de um trauma.

Restos mortais de Dona Leopoldina
Restos mortais de Dona Leopoldina, primeira imperatriz do Brasil. De acordo com a exumação, ela tinha entre 1,54m e 1,60m de altura. (foto: Luiz Roberto Fontes)

Leopoldina foi casada durante nove anos, passou por nove gestações e pariu sete filhos (entre eles o herdeiro do trono, Dom Pedro II). Sua vida e sua morte até hoje dividem opiniões. Uma contribuição insuspeita, no entanto, é frequentemente esquecida: a imperatriz foi uma das responsáveis pela vinda, ao Brasil, da missão austríaca – sob os auspícios da qual aportaram em nossas terras importantes zoólogos, botânicos e artistas, que viajaram pelo país e publicaram dois importantes clássicos: os livros Viagens pelo Brasil e Flora brasiliensis. “Leopoldina gostava de se afirmar como uma ‘cientista amadora’”, lembra Ambiel. “Ela era uma figura popular e querida no Brasil do século 19.” Novo dado: segundo a exumação, ela tinha entre 1,54m e 1,60m de altura.

Amélia: nobreza mumificada

Eis que a historiografia brasileira se vê diante de uma surpresa: o corpo de Amélia, segunda esposa de Dom Pedro I, foi mumificado. “Essa informação era desconhecida”, diz a arqueóloga. “Não imaginávamos que era uma múmia.” Não se sabe, entretanto, por que ela fora mumificada. “Pode ter sido um ‘acidente de percurso’”, cogita Ambiel, referindo-se ao fato de que, para seu funeral, o corpo foi preparado com uma solução de cânfora que pode ter sido útil para frear o processo de decomposição.

A imperatriz morreu em Lisboa em 1876, e seu caixão foi trazido à cripta imperial em 1982. “Foi colocado no interior das paredes do monumento; tivemos de procurar, pois ninguém sabia sua localização exata.” (Detalhe: no Monumento à Independência, seu nome está incorreto. Na lápide lê-se “Maria Amélia”, mas seu primeiro nome era apenas “Amélia”). Após os estudos – a bem conservada senhora tinha estatura entre 1,60m e 1,66m – ela foi ‘remumificada’.

Múmia de Dona Amélia
Múmia de Dona Amélia, segunda imperatriz do Brasil, prestes a passar por tomografia. Os historiadores não sabiam até a exumação que ela tinha sido mumificada. Após os estudos, Amélia – com estatura entre 1,60m e 1,66m – foi ‘remumificada’. (foto: Beatriz Monteiro)

Na história do Brasil, Amélia nunca foi figura central – ela esteve no país entre 1829 e 1831. Curto período. Mas foi o bastante para que instituísse na corte a língua francesa. Sobre sua relação com o imperador, Del Priore conta que era algo “sem graça”. Dom Pedro I poderia ter muitos méritos; mas não era um galanteador de primeira linha. “Ele não tinha assunto e falava francês muito mal”, reclama a donzela em seu diário, após um encontro. Nas mesmas páginas, Amélia conta que teve de “se beliscar para não dormir”. Há quem diga, entretanto, que os dois se amavam como pombinhos. Discussão para historiadores.

De qualquer maneira, conta-se que os últimos anos de Amélia foram profundamente marcados pela morte do marido e da filha – ambos por tuberculose. Enlutada em tamanha perda, dedicou-se a obras de caridade. E assim mandou construir, na Ilha da Madeira, em Portugal, um hospital para o tratamento de tuberculosos. O local permanece ativo até os dias de hoje.

O trabalho abre espaço para a arqueopatologia – ciência que estuda remanescentes de doenças pretéritas –, um campo ainda pouco explorado no país

“A exumação dos corpos foi apenas uma primeira etapa”, diz Ambiel. Com as amostras de DNA coletadas, novos dados poderão vir à tona. O trabalho abre espaço para a arqueopatologia – ciência que estuda remanescentes de doenças pretéritas –, um campo ainda pouco explorado no país. Ainda este ano, o Museu Imperial deve publicar o trabalho de Ambiel em forma de livro.

Também para fins de divulgação, a equipe estuda a possibilidade de lançar um documentário. Quanto à família imperial brasileira, querelas e intrigas históricas estão longe de um fim. “Cada historiador é livre para pensar e publicar o que quer”, diz Ambiel. “Mas, como historiadora, não posso acreditar em verdades.”

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 302 (abril de 2013).

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