O ser humano tem sido desafiado pelas doenças desde o início de sua história, e elas provavelmente o forçaram a buscar alternativas para se manter vivo e saudável. Ainda não se sabe se os humanos primitivos buscaram os ‘medicamentos’ na natureza conscientemente ou se estes foram apresentados de forma aleatória a eles nas refeições que obtinham de plantas e ervas, por exemplo. Nossa capacidade de perceber, entender e memorizar os primeiros princípios ativos obtidos de recursos naturais foi crucial para o desenvolvimento da farmacologia e da terapêutica modernas.

Os relatos escritos mais antigos dessas práticas médicas têm mais de 3,5 mil anos e estão em documentos do antigo Egito conhecidos como papiros médicos, entre os quais se destacam o papiro de Smith e o papiro Ebers, preservados em museus europeus. Considerados os primeiros tratados médicos, esses papiros serviram de guia para as prescrições por muito tempo.

O número de viciados em medicamentos é maior que o de usuários de cocaína, heroína e ecstasy somados

Hoje, o panorama é bem diferente: somos constantemente bombardeados por alternativas de medicamentos para tratar quase todos os problemas que possamos ter. Embora em todo o mundo sejam adotadas medidas importantes visando restringir o acesso e conscientizar a população para os riscos, os medicamentos mais ‘simples’ podem ser adquiridos com extrema facilidade, muitas vezes sem receita médica ou até pela internet.

Esses medicamentos de fácil acesso são utilizados para tratar dores de cabeça, resfriados, cólicas, dores musculares e problemas de saúde de menor gravidade. Mas são justamente esses fármacos os protagonistas de um quadro grave: o da automedicação e intoxicação medicamentosa.

O uso abusivo e não supervisionado de medicamentos é responsável por várias internações e mortes por ano em todo o mundo. Em 2010, a Junta Internacional de Fiscalização a Entorpecentes (Jife), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), declarou que o uso abusivo de remédios é um problema mundial, e que o número de viciados em medicamentos é maior que o de usuários de cocaína, heroína e ecstasy somados.

Papiro de Smith
O papiro de Smith, encontrado no Egito, tem cerca de 3,5 mil anos e é um dos mais antigos documentos sobre procedimentos cirúrgicos e medicamentos conhecidos. (foto: Wikimedia Commons)

Os dados são ainda mais preocupantes: o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência federal dos Estados Unidos, revelou que triplicou naquele país, de 1990 a 2008, o número de mortes por overdose de analgésicos. No Brasil, para que se tenha uma ideia do volume de remédios consumidos pela população, mais de 92 milhões de comprimidos de aspirina (marca comercial mais famosa do analgésico ácido-acetilsalicílico) foram consumidos em 2009. No mundo, são vendidas cerca de 216 milhões de unidades por dia.

Vale lembrar que esses números dizem respeito a apenas um tipo de analgésico, e de uma só marca, mas permitem ter uma noção da quantidade absurda que seria atingida somando-se todos os remédios consumidos rotineiramente, como os que controlam a pressão arterial, os antibióticos, os redutores de colesterol e vários outros.

Prejuízos ao fígado

Quem ‘paga a conta’ nessa história é o fígado. Tudo porque grande parte do que é absorvido pelo sistema gastrointestinal humano – aquilo que comemos e bebemos – é drenado diretamente para o fígado pela veia porta, antes mesmo de atingir a circulação geral. Uma vez no fígado, o sangue é dirigido para os lóbulos hepáticos, pequenos grupos de células existentes no órgão, fluindo por capilares especializados. Esses minúsculos vasos sanguíneos facilitam o contato entre a corrente sanguínea e os hepatócitos, células com múltiplas funções que compõem em torno de 70% a 80% do tecido hepático.

É justamente esse contato íntimo entre o sangue e os hepatócitos que permite ao fígado desempenhar a que é considerada sua principal função: a biotransformação de toxinas e drogas, para ‘limpar’ o organismo. As células do tecido hepático contêm enorme variedade de enzimas que transformam essas substâncias nocivas em moléculas mais solúveis em água, para facilitar sua inativação e excreção.

A incidência de doenças hepáticas causadas por drogas ou toxinas tem aumentado bastante em vários países, inclusive no Brasil

As funções do fígado, porém, vão muito além da desintoxicação do corpo. Esse órgão pode desempenhar até centenas de funções diferentes, e a maioria cabe aos hepatócitos. Entre essas funções estão a remoção dos glóbulos vermelhos envelhecidos da circulação (hemocaterese), o metabolismo de lipídios, carboidratos e proteínas, o armazenamento de vitaminas e alguns sais minerais e a síntese de fatores de crescimento (substâncias que estimulam a proliferação e a diferenciação das células) e proteínas do plasma sanguíneo (essenciais em muitos processos orgânicos).

Portanto, o fígado realiza funções vitais e muito variadas. Não é à toa que doenças que prejudicam esse órgão sejam de grande importância médica. Os diversos tipos de doenças hepáticas podem ser divididos em dois grandes grupos: as de origem infecciosa e as não infecciosas. As do primeiro grupo decorrem da invasão do órgão por vírus, bactéria ou outros organismos – são exemplos a hepatite viral ou infecções por protozoários. As do segundo tipo podem se originar de problemas na produção e secreção de bile, de tumores hepáticos ou de drogas e toxinas que atingem o fígado.

A incidência de doenças hepáticas causadas por drogas ou toxinas tem aumentado bastante em vários países, inclusive no Brasil, e isso se deve principalmente ao abuso de álcool, de drogas ilícitas e até de medicamentos. Como uma das principais funções do fígado é a de metabolizar substâncias que ingerimos, ele é um dos órgãos que mais sofrem com esse abuso. O fígado pode ser danificado diretamente pelas substâncias nocivas que entram em contato com suas células ou por aquelas geradas por ele ao tentar decompor e neutralizar essas toxinas.

Você leu apenas o início do artigo publicado na CH 302. Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral.PDF aberto (gif)

Pedro Elias Marques
André Gustavo Oliveira
Gustavo Batista Menezes
Laboratório de Imunobiofotônica,
Departamento de Morfologia,
Universidade Federal de Minas Gerais

Outros conteúdos desta edição

614_256 att-22270
614_256 att-22268
614_256 att-22266
614_256 att-22264
614_256 att-22262
614_256 att-22260
614_256 att-22258
614_256 att-22256

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-22975
614_256 att-22985
614_256 att-22993
614_256 att-22995
614_256 att-22987
614_256 att-22991
614_256 att-22989
614_256 att-22999
614_256 att-22983
614_256 att-22997
614_256 att-22963
614_256 att-22937
614_256 att-22931
614_256 att-22965
614_256 att-23039