Seria possível conceituar certos aspectos da ciência se faltasse uma língua para isso? Uma linguagem científica só se desenvolveria em um ambiente cultural do qual a ciência fizesse parte? Essas perguntas estão associadas a uma questão importante, por muito tempo negligenciada: o acesso dos surdos ao conhecimento científico e a inclusão desse saber nas línguas de sinais utilizadas por esses indivíduos.
Nossa experiência com jovens surdos no Rio de Janeiro sugere que os surdos, isolados dos avanços científicos por falta de informação, não desenvolveram sinais para esses conceitos, na maioria das vezes abstratos. Criou-se, portanto, um círculo vicioso: os sinais não existem, os professores têm dificuldade em ensinar ciência, os intérpretes de sinais têm dificuldade em conceituar e os surdos são cada vez mais excluídos cientificamente.
O desenvolvimento de uma língua resulta da necessidade de comunicação. Isso é verdadeiro para qualquer língua: oral, escrita ou gestual. Nosso trabalho demonstrou que, ao vivenciar experimentos e práticas envolvendo conceitos científicos, alunos surdos, professores e intérpretes desenvolveram sinais para termos científicos ou tecnológicos que favoreceram a interação entre os alunos e facilitaram a aquisição e a compreensão desses conceitos. Após testes entre outros alunos surdos, os novos sinais aceitos foram documentados e serão disponibilizados à comunidade surda, em fascículos temáticos, formando um glossário científico em biociências.
Origens e contestações
Muitas pessoas ignoram que existem diferentes línguas de sinais. Além disso, estas são muitas vezes confundidas com mímica, ou são consideradas ‘linguagens’ e não línguas com estrutura linguística própria. Outros acreditam que a língua de sinais é a língua local soletrada em sinais. Então, o que é essa língua? Como surgiu? Onde é utilizada? Por que não é universal? Qual a origem das línguas de sinais?
A comunicação gestual é um processo absolutamente natural. Crianças, antes de aprender a falar, se comunicam apontando, fazendo gestos e modificando a expressão facial. Uma língua, porém, é mais que isso: ela tem uma organização linguística, e isso só foi constatado nas línguas de sinais há cerca de 50 anos, pelo norte-americano William Stokoe Jr. (1919-2000), em estudo sobre a língua de sinais americana (ASL, na sigla em inglês).
Qualquer língua é essencial não apenas para a comunicação interpessoal, mas também para permitir a organização do pensamento. Na Antiguidade, acreditava-se que as pessoas só aprendiam por meio da palavra ouvida, o que excluía os surdos. Essa noção só seria contestada na Idade Média. No século 15, por exemplo, o humanista holandês Rudophus Agricola (1444-1485) afirmou, em um livro, que uma pessoa surda poderia expressar seus pensamentos por escrito. Nessa época, porém, poucas pessoas eram letradas e sabiam ler e escrever.
Cerca de 100 anos depois, esse livro chegou às mãos do médico e matemático italiano Girolamo Cardano (1501-1576), que tinha um filho surdo. Para ele, o uso de palavras não era indispensável para compreender as ideias, mas era necessária uma língua e por isso os surdos deveriam aprender a ler e a escrever.
Não se falava ainda em língua de sinais. Esta teria sido inventada no século 17 pelo monge espanhol Juan Pablo de Bonet (c.1573-1633). Ele escreveu o livro Redução das letras e arte para ensinar a falar aos mudos e criou um alfabeto manual, semelhante ao atual alfabeto das línguas de sinais espanhola, francesa, americana e brasileira – o da língua britânica de sinais é bastante diferente. Ainda assim, o uso desse alfabeto exigia aprender a soletrar e, portanto, saber ler e escrever em determinada língua.
Os sinais que representam palavras (tornando desnecessário soletrar) provavelmente evoluíram de forma independente em vários locais. No século 18, duas iniciativas importantes ocorreram. O escocês Thomas Braidwood (1715-1806) criou em 1760, em Edimburgo, a primeira escola para surdos, recebendo surdos de famílias abonadas de várias regiões, que traziam os próprios sinais.
Em 1771, o abade francês Charles Michel de L’Epée (1712-1789) fundou uma escola para surdos, e os alunos tinham diversas origens e traziam e trocavam diferentes sinais. Com base neles, o abade L’Epée elaborou uma língua de sinais. De sua iniciativa nasceu a língua francesa de sinais, exportada depois para os Estados Unidos, onde deu origem à ASL, e para o Brasil, onde gerou língua brasileira de sinais, a Libras. Essas línguas, é claro, sofreram modificações e adições desde então.
Julia Barral
Flavio Eduardo Pinto-Silva
Vivian M. Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro