Ossos do ofício. O Brasil, por manter relações diplomáticas com a República Islâmica do Irã, recebe no final de novembro a visita do mandatário desse país, o presidente Mahmoud Ahmadinejad, célebre, entre outras façanhas, pela militante negação da existência do Holocausto. A atitude do dignitário iraniano tem recebido condenação generalizada e explícita. A moderação das autoridades brasileiras na matéria não deixa de ser preocupante, para um país que pretende ocupar posição de protagonista no cenário político internacional.

As opiniões do presidente do Irã não configuram uma aberração. Elas estão associadas a uma corrente autodenominada “revisionista”, presente em círculos antissemitas europeus desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Tal corrente nega o episódio que vitimou cerca de 6 milhões de judeus, entre outros – como ciganos, homossexuais e dissidentes políticos – julgados indignos de viver pelos nazistas.

Não há nada de errado, em princípio, com a ideia de revisionismo. O termo, historicamente, surgiu no século 19 associado a causa mais do que defensável: a revisão da condenação de Alfred Dreyfuss (1859-1935), capitão francês vítima de acusações injustas e infamantes, eivadas de antissemitismo. O conteúdo da ideia de “revisão”, porém, dependerá daquilo que se pretende rever e do grau de refutação da existência de eventos históricos esmagadoramente evidentes.

Após a Segunda Guerra, emergiu de forma progressiva um “revisionismo negacionista” dotado de claras tinturas antissemitas e, a partir de 1948, antissionistas. Em seu clássico livro Les assassins de la mémoire, o historiador francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007) resumiu os ‘princípios’ centrais sustentados pelos revisionistas:

    Não houve o genocídio praticado pelos nazistas, e a câmara de gás – seu principal símbolo – jamais teria existido.
    A “solução final” – termo presente no vocabulário oficial do regime nazista – não teria significado senão a expulsão dos judeus para a Europa Oriental.
    O número de judeus vitimados teria sido muito menor – 1 milhão e não 6 milhões – e resultaria de bombardeios dos aliados e de doenças.
    A Alemanha hitlerista não seria responsável pela guerra: os judeus são apresentados pelos revisionistas como corresponsáveis pela eclosão do conflito.
    A principal ameaça à humanidade, durante a década de 1930, não era representada pela Alemanha, mas pela União Soviética. Por Stalin, não por Hitler.
    O genocídio judaico teria sido uma invenção da propaganda aliada, fortemente influenciada pelos judeus que, “sob a influência do Talmud, têm propensão à imaginação estatística”, segundo antissemitas militantes e revisionistas como o norte-americano Arthur Butz e o francês Robert Faurisson, ambos ‘historiadores’ execrados por historiadores respeitáveis.

 

As teses do revisionismo negacionista são indefensáveis

As “teses” do revisionismo negacionista são indefensáveis. Em vários países são tratadas no campo do direito penal, como criminosas. A fracassada tentativa de processar a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, feita pelo historiador revisionista inglês David Irving em um tribunal inglês, definiu de forma clara o lugar dos revisionistas negacionistas no cenário atual.

Lipstadt demonstrou o caráter neonazista das teses de Irving e seu antissemitismo doentio. Nos termos do filósofo hebreu Amós Finkelstein, os revisionistas praticam uma “contra-história“, uma “narrativa inautêntica e uma ação perniciosa”, voltadas para a “distorção da autoimagem do adversário, de sua identidade, por meio da desconstrução de sua memória”.

Ahmadinejad é herdeiro dessa tradição revisionista. Sua pregação encontra abrigo em um antissemitismo difuso, assentado em abissal ignorância histórica. Mais do que um ódio a Israel e aos judeus, trata-se da sobrevivência, em pleno século 21, de algumas das mais fundamentais motivações do nazismo.

 

Renato Lessa

 

Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(Universidade Candido Mendes) e Universidade Federal Fluminense

 Texto publicado na CH 265 (novembro/2009)

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