A ciência está cheia de mistérios. Mas há um que faz de todos os outros meros apêndices: 70% do universo são formados de quê? Agora, vêm à luz – com participação brasileira – os primeiros dados para tentar dizimar essa questão, que é das mais intrigantes interrogações do conhecimento.
Pensar que depois de milênios praticando a astronomia e mais de um século de astrofísica, cientistas se veem diante dessa pergunta científica (e filosófica) extremamente penetrante. Para tentar respondê-la, formou-se o DES (sigla, em inglês, para Levantamento da Energia Escura), que conta com boa participação de pesquisadores brasileiros.
O DES tem sua vedete. É a câmara conhecida como DECam, que está apontada para o céu do hemisfério Sul. Recentemente, para a esfuziante alegria dos participantes do experimento, o equipamento funcionou como o previsto e, agora, já coleta dados.
Pode-se dizer que a fotografia da DECam que abre este texto levou, na verdade, oito (árduos) anos para ser feita. Esse foi o tempo necessário não só para planejar e projetar o equipamento, mas também para solucionar problemas relativos à sua montagem, que envolve mecânica de muita precisão, baixíssimas temperaturas de funcionamento, eletrônica sofisticada, óptica para lá de complexa, processamento dos dados colhidos…
Com cinco lentes, filtros e outros apetrechos tecnológicos, a DECam tem resolução de 570 megapixels – as melhores câmaras fotográficas do mercado, ultraprofissionais, estão, em geral, na casa dos 50 mega. Parte do sistema tem que trabalhar refrigerada a nitrogênio líquido.
Com as imagens ultradefinidas da DECam – que fica acoplada ao telescópio Blanco, no deserto do Chile –, os pesquisadores dos países participantes (EUA, Reino Unido, Brasil, Espanha, Alemanha e Suíça) analisarão, por exemplo, como as galáxias se aglomeram; como a luz desses aglomerados se distorce em sua trajetória até nós; como o brilho de eventuais explosões de estrelas naquelas regiões se comporta. Somem-se a essas análises, cálculos parrudos e – como é comum em ciência – umas gotas de sorte, e o resultado, espera-se, será algo sobre o ainda misterioso perfil daquilo que recheia 70% do universo.
O Brasil entrou no DES graças à iniciativa de Martín Makler, físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ). Hoje, são cerca de 40 pessoas ligadas ao experimento, incluindo pesquisadores, alunos e equipe de tecnologia e informática, de instituições como o CBPF e o Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, e o Laboratório Nacional de Computação Científica, em Petrópolis (RJ), bem como das universidades Federal do Rio Grande do Sul, de São Paulo e Estadual Paulista. Cerca de 10 mestres e doutores já se formaram com temas relativos ao DES.
Uma das tarefas do Brasil na colaboração foi desenvolver o programa computacional Quick Reduce, que, acoplado ao telescópio, faz um primeiro tratamento das imagens obtidas pela DECam.
Antigravidade
Os 70% do universo têm nome: energia escura. Supõe-se que esse estofo seja como um tipo de antigravidade: em vez de atrair, exerce a repulsão da matéria. E acredita-se que é essa energia que faz com que o universo se expanda de forma acelerada, fenômeno descoberto há cerca de 15 anos.
É comum remeter as origens da energia escura a 1915, ano em que o físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955) resolveu – talvez, por preconceito filosófico – incluir nas equações de sua teoria da gravidade (mais conhecida como relatividade geral) um termo para fazer o universo – naquele tempo, sinônimo de Via Láctea – não colapsar. Ou seja, um tipo de antigravidade, representado por um termo denominado ‘lambda’.
Cerca de 15 anos depois, Einstein, ao saber que o universo estava se expandindo, disse que aquele termo (hoje, conhecido por constante cosmológica) havia sido “o maior erro científico” da vida dele. Lambda ficou igual a zero, então.
No entanto, por uma ironia cósmica, astrofísicos mostraram, no final da década de 1990, que o universo estava não só se expandindo, mas fazia isso de forma acelerada. Como explicar? Voltou à cena aquele “maior erro científico” de Einstein. Em termos técnicos, lambda deixou de ser zero.
Outros 25% do recheio do universo são também misteriosos e são conhecidos pelo nome matéria escura [em tempo: a natureza da energia e da matéria escuras são completamente distintas, apesar de ambas dividirem o mesmo ‘sobrenome’]. Os 5% restantes são a matéria que forma galáxias, planetas, seres humanos, cachorros, bactérias, vírus etc. É a chamada matéria bariônica.
E serve para quê?
Certo, pode haver entre os leitores aquele tipo cético que pergunta coisas do tipo ‘Por que o Brasil deve gastar tanto dinheiro nisso?’ Resposta 1: avançar o conhecimento já justificaria cada centavo investido. Subitem da resposta 1: além disso, como se sabe desde a Segunda Guerra, conhecimento é poder, coisa que boa parte dos governantes por aqui não percebeu. Países poderosos assim o são por terem investido em ciência.
Mas digamos que o questionador busque por algo mais ‘prático’. Então, resposta 2: a tecnologia desenvolvida em um projeto como o DES acaba desaguando nas áreas de telecomunicações, medicina, transportes, energia, lazer etc. – basta lembrar que o dispositivo (CCD) usado nas câmaras fotográficas digitais foi desenvolvido em projetos de astronomia. Resposta 3: grandes projetos de ciência geram empregos, melhoram a economia dos países envolvidos e, tão importante quanto, formam recursos humanos especializados; ou seja, geram bem-estar e riqueza.
Digamos que nosso cético fictício ainda esteja com ar desconfiado. Então, vale apelar para o bordão daquele cartão de crédito: descobrir o que está por trás do maior mistério da atualidade não tem preço.
O DES levou oito anos para revelar essa primeira luz. Mas os mais emocionantes serão os próximos oito. Com o que for obtido neles, é possível que o posto de maior mistério da atualidade fique vago.
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 298 (novembro de 2012).