O futebol, para além de ser o esporte mais popular do mundo, é também, de modo menos conhecido, um grande produtor de conflitos na correlação de forças entre classes e grupos sociais. A passagem do amadorismo para o profissionalismo – que geralmente tem repercussões sobre tais conflitos nos países em que esse esporte foi difundido – teve no Brasil características marcantes. Após uma disseminação muito forte da prática de jogar e de assistir, se instaurou, nos clubes que iniciavam a disputa de campeonatos, uma concorrência pelos jogadores mais competentes. Isso ocorreu por meio de práticas que visavam fornecer condições materiais para que os jogadores pudessem se dedicar em tempo integral ao esporte.
Essas condições, antes restritas aos praticantes da elite, que tinham a ‘vida ganha’, e a trabalhadores de times de empresas, que tinham seu salário de operário ou empregado e tempo para treinar, começaram a ser asseguradas também por algumas associações esportivas: os clubes. Estes recrutavam atletas entre a multidão de jogadores das classes populares, onde o esporte se disseminava, como mostra trabalho do sociólogo e historiador Leonardo A. M. Pereira.
Essa prática, que era estigmatizada como amadorismo marrom ou profissionalismo disfarçado, aumentou no final da década de 1920 e na de 1930, com destaque para o clube Vasco da Gama, da colônia portuguesa do Rio de Janeiro, que, ao contrário das associações de elite, passou a recrutar atletas das classes populares.
A ascensão das classes populares tem, no Brasil, entre suas marcas corporais, a da cor da pele. É conhecida a história do jogador do Fluminense Football Club que, na segunda década do século 20, antes do jogo de estreia no clube de elite, passou pó de arroz no rosto para clareá-lo. No período anterior ao profissionalismo (instalado a partir de 1933), os clubes enfrentavam outras dificuldades indiretas para incorporar jogadores das classes populares: muitos, por exemplo, não tinham estádios próprios ou não podiam cumprir exigências então introduzidas quanto à escolaridade dos atletas.
Pessimismo versus ufanismo
Efeitos trazidos pelas Copas do Mundo, iniciadas em 1930, aceleraram a profissionalização do futebol. O fato de a primeira Copa ter ocorrido no Uruguai (que foi campeão, superando a Argentina no jogo final), longe do continente de origem do futebol (a Europa), diz muito sobre a difusão internacional desse esporte. Para a Copa de 1934, na Itália, o país-sede recrutou jogadores de origem italiana na Argentina, no Uruguai e no Brasil, inaugurando o mercado de transferências de atletas, o que fortaleceu indiretamente a implantação do profissionalismo nesses países e, de modo inesperado, deu mais espaços aos jogadores nativos (e a mestiços e negros).
A Copa de 1938, na França, é a primeira a contar com uma equipe brasileira de jogadores profissionais que supera o conflito regionalista (entre Rio e São Paulo), que prejudicou as campanhas de 1930 e 1934. A seleção nacional exibiu, como jogadores principais, atletas negros ou mestiços como Leônidas da Silva e Domingos da Guia, e apresentou ao mundo um novo estilo corporal. Jornalistas esportivos franceses, na época, admiraram o estilo malabarista e o controle de bola, embora criticassem a falta de objetividade e racionalidade embutida nessa equipe multicolorida de país exótico.
Já por parte da elite intelectual brasileira, essa equipe provoca uma descoberta do futebol como força de afirmação nacional – entre os principais cultores dessa visão estavam o antropólogo-historiador Gilberto Freyre, o romancista José Lins do Rego e o jornalista Mario Filho, como bem analisou outro sociólogo e historiador, Bernardo Buarque de Hollanda. Essa descoberta acontece em um ambiente dominado pelo pessimismo quanto à possibilidade de sucesso de um país com grande parte da população negra e mestiça, advinda de séculos de escravidão.
A Copa de 1950 contribuiu fortemente para associar o futebol à construção de uma identidade nacional. Por um lado, o país foi chamado a sediar a Copa quando a Europa do pós-guerra estava em reconstrução. Por outro, a derrota no jogo final reforçou os sentimentos pessimistas em relação à afirmação internacional do país. Por um lado, o país ergueu o maior estádio do mundo, cuja arquitetura (somada ao baixo preço dos ingressos) favorecia a incorporação de grandes multidões e fornecia um lugar central para a expressão de sentimentos coletivos, na arquibancada e na ‘geral’. Por outro, as atitudes autodepreciativas trazidas pela derrota inesperada na final, com explicações racialistas (a ‘inferioridade dos jogadores’ refletiria a ‘inferioridade do povo brasileiro’) que persistem no novo insucesso quatro anos depois, como registra o relatório do chefe da delegação brasileira na Copa de 1954.
Os mesmos processos sociais que levaram à escolha de jogadores pelo mérito, permitindo a incorporação de atletas das classes populares, vista como bem-sucedida na Copa de 1938 e como causa do fracasso em 1950 e 1954, impulsionaram a vitória brasileira da Copa de 1958, na Suécia. Naquela equipe, a junção de jogadores mais experientes (como Nilton Santos e Didi) com novatos (como Garrincha e Pelé), a continuidade na incorporação meritocrática (envolvendo as classes populares no esporte) e a presença de uma equipe técnica que expressava a complexidade do campo profissional do futebol no Brasil acabaram por fazer com que qualidades antes vistas como negativas fossem transformadas em positivas.
Para essa inversão contribuíram, de forma simbólica, a irreverência do futebol alegre e devastador de Garrincha, operário têxtil mestiço de origem indígena, e a audácia e competência do jovem negro Pelé, filho prodígio de ex-jogador. Ambos viraram de cabeça para baixo estigmas corporais que agora passavam a ser valorizados.
Essa inversão se consolida com os sucessos alcançados nas Copas de 1962 e 1970. O Brasil torna-se um símbolo do jogo de futebol bem jogado. A vitória, afinal alcançada em 1958 e repetida em 1962 e 1970, pôde ter seus efeitos incorporados a um forte sentimento de nacionalidade, graças também ao sofrimento e à reflexão coletiva com a derrota de 1950. Essa alternância entre estiveram nesses países e ali constituíram bom patrimônio.
Desde os anos 1990, as seleções nacionais (em especial de países das Américas e da África) passaram a ser compostas, em sua grande maioria, por jogadores que atuam em outros países. É o caso do Brasil, desde então.
A antropóloga Carmen Rial fez extensa pesquisa, entre as décadas de 1990 e de 2000, com brasileiros que jogam no exterior, em vários países, desvendando os investimentos familiares em torno desses jogadores emigrantes, que em sua maioria são filhos caçulas, pentecostais e pretendem voltar ao país após reunir um patrimônio que não teriam se tivessem permanecido aqui.
O crescente comercialismo, associado à era do alcance mundial das transmissões televisivas e dos grandes contratos de imagem publicitária, alimenta esse mercado internacional de jogadores bem pagos. Tem ainda o efeito de quebrar, nos diferentes países, o equilíbrio entre as divisões inferiores de clubes, onde se pratica um futebol semiamador ou semiprofissional, e as primeiras divisões, impedindo as comunicações e passagens de jogadores entre essas divisões, que alimentavam a importância do esporte, praticado por grandes oportunidade perdida em casa e vitórias no exterior na continuidade de um mesmo estilo de jogo proporcionou algo como uma exibição das qualidades nacionais, em que características culturais se imprimem nas técnicas corporais, dentro dos limites possíveis das regras do jogo.
José Sergio Leite Lopes
Departamento de Antropologia, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro