As queimaduras são uma das principais causas externas de morte no Brasil. Em média, um milhão de casos são registrados a cada ano, segundo a Sociedade Brasileira de Queimaduras. Uma pesquisa brasileira promete melhorar esse cenário com um novo tratamento para queimados que usa gordura corporal do próprio paciente para cicatrizar mais rapidamente as suas feridas.
Na terapia proposta, a gordura do paciente é aspirada e aplicada sobre a queimadura com uma gaze, como se fosse uma pomada. O cirurgião plástico Marco Aurélio Pellon, líder da pesquisa, explica que as células de gordura, chamadas adipócitos, produzem uma série de substâncias que estimulam a circulação sanguínea e a multiplicação das células da pele.
“Quando retiradas do corpo, a falta de oxigênio faz com que elas produzam certos hormônios que chegam até as células da queimadura e aceleram o processo de cicatrização”, afirma.
O tratamento começou a ser testado em 2010 com pessoas que sofreram queimaduras graves, de segundo e terceiro grau, em mais de 60% do corpo. Como cada paciente tem um tempo de resposta diferente à terapia, ainda não é possível determinar o tempo médio de cicatrização com a nova técnica.
No entanto, segundo Pellon, a velocidade de cura é visivelmente mais rápida e a qualidade da cicatrização também é melhor, o que diminui a necessidade de enxertos. “Uma cicatriz boa é aquela que, além de bom resultado estético, é também funcional, pois uma má cicatrização pode limitar os movimentos do paciente,” explica o médico, que trabalha com a recuperação de queimados há mais de 30 anos.
Após algum tempo, as células de gordura aplicadas sobre a queimadura morrem e deixam de produzir essas substâncias benéficas.
Por isso, o próximo passo da pesquisa, em parceria com o biólogo Radovan Borojevic, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é conservar as células adiposas em um ambiente controlado em que recebam oxigênio na medida certa para não morrer e continuar produzindo os hormônios de cicatrização.
Com o cultivo das células, será possível retirar essas substâncias diversas vezes de uma mesma amostra. “Queremos extraí-las do tecido adiposo e aplicá-las várias vezes na queimadura para ver se os resultados são melhores”, explica Pellon. “Esse estudo pode caminhar para o desenvolvimento de um novo fármaco”, acrescenta o médico, que testará o novo procedimento em pacientes da Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro.
O estudo só foi possível devido a um novo conceito anatômico desenvolvido por Pellon e apresentado este ano no encontro da Federação Internacional de Terapêutica e Ciência do Tecido Adiposo (Ifats, na sigla em inglês), em Dallas, nos Estados Unidos.
Segundo o médico, é preciso rever a ideia da anatomia clássica de que pele e gordura são elementos separados. Ele propõe que ambas são interdependentes e fazem parte de um único e importante complexo, como se formassem um só órgão.
“Com essa ideia podemos entender muitos processos que não são bem compreendidos e desenvolver novas linhas de pesquisa. Se não fosse por esse conceito, nem teríamos iniciado esse tratamento para queimados”, comenta.
Célula camaleão
O médico explica que o tecido adiposo é responsável por diversos processos do nosso organismo, como o crescimento dos pelos, a reserva de energia, o controle da glicose, da pressão arterial, do hormônio da fome e da saúde das artérias.
Além disso, ressalta que, recentemente, foi descoberto que a célula de gordura tem a capacidade de se transformar em vários outros tipos de célula, como muscular, cardíaca e nervosa. “O adipócito parece agir como uma peça de reposição, ficando espalhada por todo o nosso corpo só esperando para se transformar em outra”, conta Pellon.
Se esse processo de transformação celular tiver acontecido nos pacientes tratados com a nova terapia de gordura, é possível que, além de terem tido as células da pele estimuladas a crescer, tenham sido beneficiados também com a criação de novas células que formaram vasos sanguíneos, músculos e nervos nas áreas queimadas.
“Não é possível afirmar que isso aconteceu com nossos pacientes, mas existe essa possibilidade”, conta Pellon. “A nossa intenção é estudar também esse processo, provavelmente em camundongos. Mas, independentemente disso, o que importa é que o resultado final da terapia se mostrou muito bom.”
O cirurgião acredita que essa capacidade regenerativa da célula de gordura pode ser usada para desenvolver tratamentos para outros problemas, como o infarto. A ideia, que ainda vai ser testada, é aplicar as substâncias produzidas pela gordura no coração do paciente infartado para que as células se multipliquem, refaçam o tecido danificado e induzam a melhor circulação sanguínea.
Outra possibilidade, mais complicada de ser executada, seria aplicar diretamente a gordura no órgão, para que as células adiposas se transformassem em células cardíacas. “A célula de gordura consegue se transformar em músculo cardíaco com batimentos e tudo. Por isso, a perspectiva futura desse tipo de tratamento é muito animadora”, conclui o médico.
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ