O Trypanosoma brucei, agente causador da doença do sono, é conhecido por sua capacidade de se esquivar do ataque do sistema imune, o que torna o desenvolvimento de uma vacina um processo difícil.
Agora, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em colaboração com as universidades Livre de Bruxelas (ULB), na Bélgica, e Ludwig Maximilians, de Munique, na Alemanha, descobriram uma nova ferramenta do parasita para garantir o sucesso da infecção: uma proteína chamada adenilato-ciclase.
Ela permite que os primeiros tripanossomas da infecção, enquanto são destruídos, envenenem a primeira onda de células da resposta imune, garantindo o sucesso dos parasitas que vêm depois. A descoberta foi publicada na revista científica norte-americana Science.
A doença do sono é transmitida pela mosca tsé-tsé e ameaça mais de 60 milhões de pessoas em 36 países da África subsaariana. Embora o número de pessoas infectadas esteja diminuindo, 48 mil pessoas morreram devido à doença só em 2008 e sempre há risco de epidemia.
Além disso, esse mal não é um problema apenas para a população – é uma questão agropecuária também. Uma subespécie desse tripanossoma, o Trypanosoma brucei brucei, ataca o gado, gerando a doença chamada nagana. “As estimativas indicam que se pudéssemos eliminar esse mal, a produção de bovinos na região aumentaria em cinco vezes”, revela o biólogo belga Didier Salmon, cocoordenador da pesquisa e chefe do Laboratório de Biologia Molecular e Celular de Tripanossomatídeos da UFRJ.
Um problema para combater a doença do sono é o ‘casaco’ de proteínas que envolve o tripanossoma. Chamadas de glicoproteínas variáveis de superfície (VSG, na sigla em inglês), elas envolvem totalmente o parasita, impedindo que o sistema imunológico reconheça estruturas importantes do invasor (antígenos não variáveis), contra as quais uma resposta imune seria bastante eficiente. Incapazes de ter acesso a esses antígenos, os mecanismos imunitários reconhecem e atacam essas VSGs.
No entanto, cerca de 0,01% dos tripanossomas expressa essas proteínas com uma ligeira diferença, o que os torna resistentes ao ataque do sistema imune. “Assim, uma determinada resposta destrói os parasitas para a qual ela foi programada, mas aqueles que tinham VSGs diferentes sobrevivem e se multiplicam. Quando uma nova resposta é produzida contra estes, outro 0,01% da população será distinto e sobreviverá. E assim por diante”, conta Salmon, para quem mesmo a capacidade do corpo humano de produzir 10 trilhões de variantes de anticorpos é insuficiente para lidar com as VSGs. “Esse escudo de proteção também torna impossível o desenvolvimento de uma vacina”, acrescenta.
Inata versus adaptativa
Mas o casaco de VSG não é o único mecanismo pelo qual o T. brucei escapa do sistema imune. Salmon e os outros pesquisadores descobriram esse novo sistema ao estudar uma proteína do parasita, a adenilato-ciclase, a qual seria importante para a diferenciação celular do microrganismo.
Ela está localizada na membrana do tripanossoma e fica escondida sob o manto de VSGs. Quando o parasita é submetido a um estresse, como ter sua membrana rompida, essa proteína se dimeriza – ou seja, duas cópias se unem, por uma reação química – e essa proteína ganha atividade enzimática, produzindo uma pequena molécula, a adenosina-monofostato cíclico (AMPc), que seria a chave desse novo mecanismo ao neutralizar a imunidade inata do organismo.
Quando somos infectados, antes que nosso corpo possa produzir uma resposta direcionada, conhecida como imunidade adaptativa, ele emprega recursos ‘genéricos’, a imunidade inata. Células do sistema imune, como monócitos inflamatórios e macrófagos, migram para o local de entrada dos patógenos e, além de englobar e destruir os microrganismos (fagocitose), produzem substâncias chamadas citocinas, mais especificamente, o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa), que é tóxico para os tripanossomas. As citocinas estimulam outras células imunológicas, as quais vão construir uma resposta mais específica à infecção.
“Com o Trypanosoma brucei isso não acontece, porque quando ele é fagocitado e sua membrana rompida, a adenilato-ciclase produz o AMPc, que desativa a produção de TNF-alfa por meio da ativação da proteína cinase-A da célula. Assim, o parasita se ‘sacrifica’ e impede que o sistema imune consiga responder a tempo à infecção, permitindo que outros parasitas proliferem e colonizem o hospedeiro. É como se ele fosse um kamikaze altruísta”, resume o biólogo.
A hipótese foi comprovada em laboratório, quando Salmon e seus colegas criaram mutantes do tripanossoma nos quais a adenilato-ciclase era incapaz de produzir AMPc. Ao serem injetados em camundongos em quantidades bastante superiores àquelas introduzidas por uma picada da mosca tsé-tsé – 10 mil a um milhão, em vez de cerca de 100 –, esses mutantes do parasita não conseguiram estabelecer uma infecção. “Usamos também uma forma do tripanossoma capaz de matar em três dias e ainda assim a imunidade inata foi capaz de debelar o ataque, destruindo o parasita”, reforça o biólogo.
Como os mutantes foram marcados com um isótopo radioativo, os pesquisadores foram capazes de rastreá-los no organismo do camundongo usando tomografia por emissão de pósitrons (PET) e descobriram que o embate entre as células do sistema imune e o tripanossoma se dá em especial no fígado do animal e não no local de entrada do parasita.
Segundo Salmon, é a primeira vez que se encontra esse mecanismo de evasão da resposta imune em um organismo eucariótico (que tem células com núcleo), embora ele já tenha sido visto na bactéria Mycobacterium tuberculosis, causadora da tuberculose.
Os pesquisadores agora vão investigar mais detalhadamente a adenilato-ciclase. Para se ter uma ideia de sua importância para esse parasita, enquanto o Trypanosoma cruzi, agente causador da doença de Chagas, só tem 10 variantes (isoformas) dessa proteína, o T. brucei tem 80.
Além de estudar a região N-terminal da proteína, a qual se projeta para fora do parasita, os cientistas querem também determinar como o AMPc entra nos macrófagos. “Já sabemos que seu alvo na célula é a proteína cinase-A”, complementa Salmon. Para ele, a descoberta oferece novas perspectivas de tratamento da doença do sono. “Se conseguirmos interferir nesse processo logo no início da infecção, por exemplo, usando anticorpos que bloqueiem a adenilato-ciclase, podemos impedir que a infecção se estabeleça”, observa.
Fred Furtado
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 296 (setembro de 2012).