Circunstâncias fortuitas levaram ao exílio na Argentina o escritor polonês Witold Gombrowicz, nascido em Maloszyce, em 1904. Gombrowicz deixou seu país com destino à América do Sul e, após o desembarque em Buenos Aires, foi surpreendido com a notícia da eclosão da Segunda Guerra. Apesar das dificuldades que se descortinavam em seu horizonte, decidiu ficar. Escritor já com boa reputação na Polônia, teve que buscar meios de renascer das cinzas em um mundo estranho e hostil no qual viveu por mais de duas décadas.
Os 50 anos de seu retorno à Europa, em 1963 – já com prestígio consolidado e obras traduzidas para várias línguas –, têm sido lembrados por admiradores e estudiosos de sua obra, como Marcelo Paiva de Souza, doutor em ciência da literatura pela Universidade Jagiello´nski, em Cracóvia, Polônia, e professor de literatura polonesa da Universidade Federal do Paraná. Nesta entrevista ao sobreCultura, Marcelo descreve a trajetória vitoriosa de um escritor que soube dar a volta por cima, fala da importância de sua obra no panorama da literatura mundial e tenta encontrar razões que expliquem o relativo silêncio em torno do nome de Witold Gombrowicz no Brasil.
sobreCultura: Como apresentaria Gombrowicz ao leitor brasileiro?
Marcelo Paiva de Souza: Seria interessante dar a palavra ao próprio escritor, cuja verve é pródiga em autocomentários, para se ter uma amostra de seu trabalho de linguagem. Outro modo de apresentá-lo seria remontar ao início de sua carreira. Ele estreou na literatura nos anos 1930; seu primeiro livro, a coletânea de contos Memórias da época do amadurecimento, é de 1933. A obra despertou nos críticos uma reação ambígua: reconheceram o talento do jovem escritor, mas não fisgaram o alcance de seu projeto criativo.
Na mesma década surgiram a peça Ivone, princesa da Borgonha [1935; primeira edição, 1938] e o romance Ferdydurke [1937]. Esses textos revelam a versatilidade do autor e um universo literário inovador e inconfundível. Ferdydurke, sobretudo, é corrosivo, insolente, afronta a cultura letrada da época, mostrando, com humor, como forças exteriores formam/conformam/deformam o indivíduo.
Em suma, Gombrowicz faz considerável barulho na literatura polonesa da década de 1930. Não se filia a ‘panelas’ literárias mais prestigiadas nem a grupos de vanguarda; mantém-se fora, deseja estar fora. Cabe sublinhar isso, pois de algum modo a experiência do exílio que se abateria sobre ele potencia uma situação que, intrinsecamente, já experimentava em seu país.
Quando ele deixa a Polônia?
Em 1939, por circunstâncias fortuitas, tomou um navio que o levou a Buenos Aires. Após o desembarque, veio a notícia da eclosão da Segunda Guerra e da invasão da Polônia pela Alemanha. Gombrowicz decidiu ficar em Buenos Aires, mesmo sem conhecer ninguém ali, sem falar espanhol e com apenas 200 dólares no bolso. Tem início então o longo período, de mais de 20 anos, em que viverá na Argentina.
Oriundo de uma família de média nobreza, acostumado a uma vida confortável e já dono de considerável reputação literária na Polônia, na Argentina ele não era ninguém. Até conseguir emprego em um banco, em fins dos anos 40, viveu em hospedarias precárias e enfrentou muitos outros obstáculos. Mais tarde irá expor em seu Diário o outro lado da moeda. Apesar das dificuldades, aquele período teve para ele qualquer coisa de libertação. Nesse sentido, o desenraizamento e a pobreza são para Gombrowicz um rejuvenescer, um lançar-se ao voo.
Como era a relação de Gombrowicz com o mundo letrado em Buenos Aires?
Difícil, para dizer o mínimo. O escritor falará disso em seu Diário e no volume Testamento, que surgiu de suas conversas com o crítico e romancista francês Dominique de Roux. Nessas obras, Gombrowicz reflete sobre seus malogrados contatos com os notáveis do mundo literário portenho. Simplificando a questão, o desentendimento nasceu de sua recusa a fazer o papel tradicional do escritor exilado que busca convívio com o establishment cultural da localidade em que foi dar. Com calculado esnobismo, declara-se conde, desdenha da forçosa peregrinação ao salão da escritora Victoria Ocampo, olha atravessado para o escritor Jorge Luis Borges e seus acólitos…
Se, por um lado, houve desencontro, não faltou, por outro, o contrapeso das afinidades eletivas, das simpatias e amizades, especialmente entre figuras mais jovens do universo intelectual de então em Buenos Aires, como Virgilio Piñera, Alejandro Rússovich e outros, que se deixam fascinar por ele. Graças a esses contatos, a literatura gombrowicziana enfim passa a existir no exílio do escritor. Primeiro, com a tradução de Ferdydurke para o espanhol, levada a cabo pelo autor, com a ajuda de ‘assessores’ locais, e publicada em 1947. O espanhol em que Ferdydurke se materializa soa anômalo, estrangeiro. O escritor Ricardo Piglia verá nessa tradução uma obra-prima, por conta das possibilidades que ela abre em termos de exploração do idioma. A essa altura, Gombrowicz conclui sua segunda peça, O casamento, traduzida para o espanhol também com a ajuda de parceiros. O texto foi publicado primeiro na Argentina, em 1948; só em 1953 sai em polonês.
Quando Gombrowicz alcança reconhecimento na França?
De certo modo, as traduções de suas obras para o espanhol vão auxiliar nisso. O crítico e ensaísta polonês Konstanty Jele´nski, colaborador do Instituto Literacki, sediado em Paris, faz com que essas versões cheguem a seu amigo François Bondy, que publica um artigo sobre Ferdydurke na influente revista Preuves. Foi assim que Maurice Nadeau conheceu a obra de Gombrowicz, tomou-se de admiração por ela e decidiu publicá-la em tradução para o francês sob o prestigioso selo Les Lettres Nouvelles, série que dirigia na editora René Julliard.
O Instituto Literacki e sua revista Kultura eram iniciativas de intelectuais e escritores poloneses dissidentes que haviam optado pelo exílio com a stalinização do país, após a Segunda Guerra. Publicavam basicamente obras de poloneses dissidentes, em polonês, para que circulassem livres da censura comunista.
Gombrowicz encontra nesse grupo interlocutores fundamentais. Graças a esse apoio, vai pouco a pouco se infiltrando no universo letrado francês e, por extensão, no europeu. Em 1958, sai a tradução francesa de Ferdydurke, um momento capital na carreira do autor. Nesse meio tempo ele vinha publicando na revista Kultura, em fragmentos, textos que mais tarde comporiam os três volumes de seu Diário. Pode-se a partir daí falar da recepção de Gombrowicz em escala mundial. Ele continuou vivendo em Buenos Aires, mas se mantinha ativamente ligado ao Instituto.
As décadas de 1950-1960 parecem ter sido um período fértil na carreira do autor, não?
Nesse período aparecem várias de suas obras mais importantes: os romances Transatlântico, Pornografia e Cosmos. É uma verdadeira explosão criativa. Parece que as energias represadas no período inicial de exílio se desencadeiam em sucessivas obras, todas geniais. São de um vigor ímpar, em diferentes âmbitos, pois, além dos romances, publicou a peça Opereta e a prosa fascinante do Diário, em que há, além de diário no sentido estrito do termo, passagens memorialísticas, efusões líricas, crítica literária e debate de ideias, além de pura e simples ficção. É uma obra em que expande com ímpeto máximo, de modo abrangente e prismático, o aspecto intelectual de seu projeto literário. Mais que mero relato autobiográfico, é um mosaico de experimentação de escrita e de pensamento, um tour de force inventivo, crítico e polêmico.
Qual a situação do autor na Argentina após a ‘conquista’ da França?
A conquista da França e da Europa vai gradativamente alterar o modo como era visto pela intelectualidade argentina, que o ignorava. A essa altura, porém, surge a oportunidade de regresso ao Velho Mundo, e em 1963 ele segue para Paris. Passa um período em Berlim e, com a saúde debilitada, fixa residência no sul da França, em Vence, onde morre em 1969, com prestígio consolidado e obras traduzidas para várias línguas. No contexto polonês, já é tido nesse momento como um dos maiores autores do país no século 20. A partir de sua morte, até hoje, a escalada é permanente. Multiplicam-se as traduções, e a recepção de sua obra é impulsionada sem cessar pela pesquisa especializada desenvolvida na Polônia e no mundo.
Como a obra de Gombrowicz foi recebida aqui?
Bakakai é seu primeiro livro publicado aqui, em 1968, com tradução de Álvaro Cabral a partir da versão francesa da obra. O volume, que saiu originalmente em 1957, reúne os contos do livro de estreia, Memórias da época do amadurecimento, dois fragmentos de Ferdydurke e três contos esparsos do autor. Infelizmente, não houve o cuidado de se fazer uma introdução, apresentando Gombrowicz e sua obra ao leitor brasileiro.
Em parte talvez isso explique o pequeno impacto da obra entre nós; sem o amparo de alguma informação e esclarecimento crítico, talvez tenha ficado indefesa demais. Ainda na primeira onda de assimilação de Gombrowicz no país, temos a publicação, em 1970 – pela mesma editora que publicou Bakakai, Expressão e Cultura –, de A pornografia, vertido do francês por Flávio Moreira da Costa. Reproduziu-se no livro o prefácio escrito por Gombrowicz para a tradução francesa do romance.
O que teria motivado editores brasileiros a traduzir Gombrowicz?
Seu nome já era mundialmente reconhecido quando começa a ser editado no Brasil. Ao longo dos anos 1960, a reputação de Gombrowicz no universo do teatro torna-se fenomenal. Em 1963-1964, o diretor argentino Jorge Lavelli encenou O casamento em Paris, e a montagem teve enorme repercussão. Em seguida, o autor foi encenado por grandes nomes do teatro europeu. Para continuar com O casamento, sucedem-se montagens em Estocolmo e Milão. Na então Berlim Ocidental, Ernst Schröder dirige a peça com cenografia do tcheco Josef Svoboda, um dos maiores cenógrafos do século 20. Em 1972, Lavelli encena Ivone, princesa da Borgonha em Buenos Aires, com grande sucesso. A carreira de Gombrowicz nos palcos alcança tal dimensão que deve ser vista como uma das molas propulsoras da divulgação de sua obra literária propriamente dita.
Quais as outras ‘ondas’ de assimilação de Gombrowicz no Brasil?
Em 1986, a editora Nova Fronteira publicou nova tradução de A pornografia, novamente a partir do francês. Mas essa versão, de Tati de Morais, foi revista com base no original polonês pelo dramaturgo e crítico teatral Yan Michalski. O lançamento teve certa ressonância, mas, de novo, a recepção crítica ficou muito aquém da força do romance.
Nos anos 2000, pela primeira vez, temos Gombrowicz traduzido no Brasil diretamente do polonês. A Companhia das Letras publicou três romances, todos traduzidos por Tomasz Barci´nski: Ferdydurke [2006], Cosmos [2007, vertido em parceria com Carlos Alexandre Sá] e, de novo, Pornografia [2009]. Traduzi a peça Ivone, princesa da Borgonha – montada no Rio de Janeiro em 2001 pela companhia L’Acte, com direção de Thierry Trémouroux [o texto não foi publicado] – e o conhecido ensaio ‘Contra os poetas’, publicado na revista Poesia Sempre – Polônia, da Biblioteca Nacional, em 2008. Além disso, saiu recentemente o livreto Curso de filosofia em seis horas e quinze minutos, traduzido do francês por Teresa Fonseca e publicado em 2011 pela José Olympio.
Acha que o autor finalmente alcançou no Brasil o lugar que merece?
Creio que ainda há flagrante distância entre Gombrowicz e o leitor brasileiro. Penso no leitor de forma ampla, mas levo em consideração nesse juízo também o leitor especializado, o pesquisador de literatura. Gombrowicz me parece ser um nome relativamente conhecido no país hoje, mas sua obra não ‘funciona’ no sentido rigoroso do termo. Não é algo que se estude, que se discuta, sobre o qual se escreva e se publique, algo que esteja de fato presente na rotina dos eventos acadêmicos na área de letras ou no âmbito da vida literária em geral. Resta não pouco a fazer em termos de tradução – e de crítica das traduções existentes. Antes de tudo, porém, o que falta mesmo é que se leia Gombrowicz! Espero ter ficado claro até aqui, porque estou convicto de que vale muito a pena.
Texto originalmente publicado no sobreCultura 16 (julho de 2014).