O tratamento da esquizofrenia – doença que atinge 24 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – restringe-se a poucos medicamentos com efeitos colaterais significativos. Uma hipótese proposta recentemente que sugere haver uma relação entre a esquizofrenia e a tendência a formar coágulos pode oferecer novas perspectivas para os pacientes com o distúrbio psiquiátrico.
Diferentemente da maioria dos estudos na área, que começam na teoria e passam para testes práticos, a hipótese surgiu de um achado do acaso. Sílvia Hoirisch-Clapauch, hematologista do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE), do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro, constatou que cinco pacientes esquizofrênicos, medicados com o anticoagulante warfarina por longo prazo para o tratamento de trombose, apresentaram uma melhora considerável nos sintomas da esquizofrenia, a ponto de suspenderem o tratamento psiquiátrico. “Eles pararam de ouvir vozes, ter alucinações e outros sintomas psicóticos”, relata a médica.
Ao examinar as tomografias computadorizadas, a hematologista constatou que nenhum dos cinco pacientes tinha lesão isquêmica, o que, de certa forma, confirmava o que a literatura médica mostra: a esquizofrenia não tem relação com o acidente vascular cerebral. “O que é comumente encontrado em exame de neuroimagem de pacientes com essa doença mental é a atrofia do hipocampo, região do cérebro que processa emoções e cognição”, comenta a médica do HFSE.
Partindo da ideia de que a medicação anticoagulante teria corrigido alguma anormalidade química no cérebro, Hoirisch-Clapauch passou a trabalhar na interface hematologia-psiquiatria, orientada pelo professor Antonio Egidio Nardi, do Instituto de Psiquiatria (Ipub) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os pesquisadores acreditam que o medicamento possa ter estimulado a formação de neurônios na área afetada ou ajudado a criar novas conexões entre eles.
Hoirisch-Clapauch explica que o mecanismo da coagulação envolve três processos: a aceleração da formação de coágulos, o freio e a destruição dos coágulos, e dezenas de ingredientes estão envolvidos nos três processos. “Imaginei que alguma substância presente no mecanismo da coagulação poderia ter contribuído para a formação de neurônios no hipocampo”, conta a pesquisadora. “Ao pesquisar na literatura médica, encontrei apenas um fator em comum: a substância que estimula a dissolução dos coágulos, chamada de ativador do plasminogênio tecidual, ou t-PA, também participa da neurogênese. Acreditamos que o anticoagulante oral, estimulando a produção de t-PA em longo prazo, possa ter ajudado a melhorar o curso da doença mental.”
Super-herói acuado
Além de seu importante papel na coagulação, a pesquisadora explica que o t-PA age como um ‘super-herói’ dentro do cérebro, combatendo os efeitos danosos do estresse. “Fortes emoções, muito estressantes, prejudicam o hipocampo, pois liberam cortisol e adrenalina, que são muito tóxicos para os neurônios”, explica a pesquisadora. “Com a ação do t-PA, voltamos ao ponto de equilíbrio, pois ele impede que os neurônios morram e, caso sejam danificados, ajuda na formação de novos.”
Segundo Hoirisch-Clapauch, a maioria de seus pacientes relata um episódio altamente estressante antes do primeiro episódio psicótico. A pesquisadora sugere que a atrofia cerebral observada no hipocampo dos pacientes com esquizofrenia seria causada justamente por esses momentos de estresse. Os indivíduos com esquizofrenia não apresentariam a atividade necessária de t-PA para proteger o cérebro das substâncias tóxicas liberadas nessas situações.
Para comprovar a hipótese, Hoirisch-Clapauch e Nardi pesquisaram os marcadores da baixa atividade do t-PA em 70 pacientes esquizofrênicos atendidos no Ipub e em 98 sem a doença (grupo controle). O estudo confirmou a suspeita: pacientes com esquizofrenia apresentavam níveis altíssimos de marcadores de baixa atividade de t-PA, em relação aos controles.
A pesquisadora ressalta que os achados precisam ser confirmados em pacientes que não receberam tratamento. “Precisamos replicar esses resultados em pessoas que não tenham sido medicadas para que possamos garantir que os baixos níveis de t-PA não são um efeito colateral do tratamento atual da doença.”
Hoirisch-Clapauch alerta que aguarda o sinal verde do Comitê de Ética em Pesquisa do Ipub para iniciar um estudo de intervenção. Serão convidados a participar desse estudo todos os pacientes que tenham anormalidades bioquímicas relacionadas à baixa atividade do t-PA – que serão divididos, por sorteio, em um grupo que receberá warfarina e um grupo-controle.
“Os anticoagulantes não devem ser usados como tratamento até a conclusão de todos os testes. Ainda são necessários mais estudos para verificar essa relação e, se comprovada, estabelecer um tratamento seguro”, alerta a pesquisadora.
Lucas Lucariny
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 316 (julho de 2014). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista.