Os acontecimentos de 1968, com seu centro de gravitação inscrito no maio francês, podem ser descritos, de acordo com Manuel Villaverde Cabral, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, como marcas de um “movimento social internacional” que “não queria tomar o poder, mas que nem por isso – ou talvez por isso – deixou de mudar o mundo”.

O caráter internacional diz respeito a simultâneas e dispersas explosões, por toda parte, de rebeldia. Afinal, 1968 abrigou os sonhos da Primavera de Praga, a revolta dos campi norte-americanos (contra a Guerra do Vietnã, o racismo e pelos direitos civis), a mobilização estudantil no Brasil contra o regime militar e diversas manifestações na América Latina e Europa. Em nenhum país, porém, o movimento exibiu tanto radicalismo e extensão quanto na França, que, durante os meses de maio e junho, viveu sob estado de insurreição.

Cartaz que circulou nos eventos de maio de 1968 na França com a frase “Seja jovem e cale a boca”. O desenho mostra um jovem calado por um homem com a silhueta do general De Gaulle, presidente francês à época (reprodução).

O filósofo Edgard Morin, no artigo ‘A comuna estudantil’, no jornal Le Monde (17/05/68), resumiu as duas dimensões centrais do maio de 68 francês: o combate ao “arcaísmo semifeudal da sociedade professoral” e à “inadaptação da Universidade à vida e ao mundo moderno” e uma “contestação global de uma sociedade adulterada”. Mais do que as tentativas de interpretação, as palavras de ordem principais parecem ser reveladoras: “nós somos o poder”; “ceder um pouco é capitular demais”; “destruir as velhas engrenagens”; “não à burocracia”. Uma frase resume as demais: “seja realista, peça o impossível”.

Não foi, no entanto, algo limitado à ação estudantil. O protesto dos intelectuais contra a censura e o ativismo dos estudantes da Universidade de Nanterre e da Sorbonne disseminou-se, com adesões maciças por todo o país. Entre maio e junho de 1968, mais de 10 milhões de trabalhadores cruzaram os braços, na maior greve da história do movimento operário francês, que atingiu todos os setores da economia e do serviço público.

Explosão de inconformidade
As palavras de ordem revelam um movimento amplo de revolta, que negava tanto a legalidade do Estado francês quanto as práticas usuais da esquerda oficial, tanto na vida partidária como na sindical. A rebeldia libertária buscava expressão direta, sem mediação de representantes e sem uma organização que a conduzisse. Mais do que um projeto político claro e unívoco, tratava-se de uma explosão de inconformidade, dirigida a vários aspectos da vida social francesa.

O atrator, nessa proliferação caótica de símbolos, pode ser encontrado em uma combinação de anticapitalismo e desconfiança em relação a qualquer poder estabelecido. Tais valores associavam-se, no plano existencial, a um elogio da experiência do encontro. Em uma sociedade tradicionalmente segmentada, em termos espaciais e sociais, o maio de 68 francês significou a quebra de barreiras e a construção, ainda que efêmera, de um espaço comum, cujo exemplo maior foi o da presença de operários nas universidades e de estudantes nas fábricas.

A experiência do encontro trouxe, ainda, a sensação de que, mais do que os objetivos finais do movimento – que nunca foram claros –, importava o movimento como fim em si mesmo, como espaço inventivo e não institucionalizado de ação. Sem dúvida, essa ausência de vertebração política impediu que a insurreição francesa de 1968 tomasse o poder do Estado. A natureza libertária e fragmentada teria que ser revertida para que isso fosse possível. O governo de Charles de Gaulle (1890-1970) não caiu e a reação conservadora mostrou que a maioria silenciosa dos franceses não estava nas barricadas de maio.

A sensação de refluxo do movimento, a partir de julho de 1968, bem pode ser medida pela frase, gravada nos muros de Paris: “Deus está morto, Marx está morto, Freud está morto e eu mesmo não me sinto muito bem.” Mas o legado de 1968 não foi afetado pelo fracasso em definir um projeto político. Valores e crenças ali ativados continuam indispensáveis para a crítica da pasmaceira da política e da mercadofilia dos tempos que correm. 

Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
e Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense
[email protected]

 

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