Sentir para ver
por Guto Nóbrega
As relações entre arte e ciência sempre trouxeram visibilidade a importantes questões que fazem ou passam a fazer parte do imaginário humano. Foi assim no Renascimento com a ciência da perspectiva, que serviu aos artistas como uma poderosa ferramenta para ver e representar o mundo, ou na modernidade, quando descobertas como raios X, comunicação sem fio a distância ou as novas diretrizes da física, apontadas pela teoria da relatividade de Albert Einstein, impulsionaram o imaginário da arte a novos horizontes. Artistas como os futuristas Umberto Boccioni ou František Kupka representaram em suas obras um universo de forças atômicas, fluxos de energia, campos de força e transparências que ressonam de maneira curiosa e visionária as descobertas mais avançadas de sua época.
É da natureza humana dialogar por meio da linguagem com o espaço e as coisas ao redor em busca de uma orientação quanto à sua existência no mundo. Num cenário altamente tecnológico como o atual, nossa percepção, subjetividade e experiência têm sido desafiadas a darem conta de uma realidade em plena mutação, que parece não admitir mais um único ponto de vista para sua apreensão. As tecnologias desenvolvidas nas últimas décadas para investigação de fenômenos em escalas tanto galácticas quanto nanoscópicas têm exercido grande influência na produção de sentido contemporânea. Os artistas em diálogo com a ciência e a tecnologia têm sido agentes importantes nesse processo.
É nesse sentido que podemos pensar como as nanotecnologias se inserem no contexto das artes. Os eventos nanométricos, ou seja, mensurados em escalas atômicas de um bilionésimo de metro – algo que pode ser comparado a uma espessura cerca de 50 mil vezes mais fina que o cabelo humano –, nos informam sobre uma realidade de característica muito peculiar. Diferente do mundo que estamos acostumados a habitar e perceber, uma realidade que sofre influência direta das leis da física quântica (dualidades entre ondas e partículas, interações atômicas e moleculares). As implicações dessa escala nas instrumentações utilizadas para fazê-la visível tornam o ato de ‘ver’ mais próximo ao de ‘sentir’ no sentido háptico (capacidade tátil) do termo.
Para entender melhor esse processo, devemos considerar o olho eletrônico do microscópio de tunelamento (STM, na sigla em inglês), criado em 1981 por Gerd Binning e Heinrich Rohrer. Esse instrumento utilizado para visualizar fenômenos em escalas atômicas opera com base numa agulha microscópica que varre a superfície da estrutura que se quer visualizar. Uma corrente elétrica constante é gerada de forma a interagir diretamente com os elétrons dos átomos, variando-se a posição da agulha enquanto a mesma varre (‘escaneia’) a superfície. É esse movimento interativo entre agulha e átomos que se traduz em imagem 3D sintetizada na tela do computador. A imagem produzida pelo STM é topográfica, tridimensional, resultado das interações entre as forças presentes no território das amostras.
A artista e pesquisadora brasileira Anna Barros, que vem estudando o tema há alguns anos, nos dá a dica do quanto pode ser fascinante ao olhar do artista essa possibilidade de imaginar o mundo de uma nova maneira, ou melhor, de criar novos mundos a partir da linguagem e dos artifícios de que dispomos. As tecnologias atuais têm permitido a produção criativa de novas metáforas a respeito da vida. No caso das nanotecnologias, elas nos oferecem acesso a um universo de interconectividade atômica regido por forças, fluxos de energia e coerência, antes apenas imaginados e validados por teoremas. A possibilidade de ‘ver’ e mesmo ‘ouvir’ tais forças (o STM torna audível o deslocamento dos átomos) abre um enorme território para explorações poéticas.
Recentemente, a IBM produziu uma animação feita em escala nanométrica, utilizando para isso manipulação dos átomos de uma superfície de cobre, depois fotografados e animados em computador. A animação ‘Um menino e seu átomo’ conta a história de Adan, um garoto que se apaixona por um átomo e passa a brincar com ele. Experimentações em arte interativa têm possibilitado recriar metaforicamente o comportamento de universos nanoscópicos em nosso mundo macro, permitindo ao visitante da exposição interagir com moléculas projetadas no espaço segundo uma lógica nano.
Ao final, se nos perguntarmos se é possível fazer arte com as nanotecnologias, a resposta, em minha opinião, é: sim, sempre será possível fazer arte com apoio na ciência e na tecnologia, desde que não nos contentemos em mostrar apenas aquilo que a tecnologia ou a ciência nos oferece de mágico. É preciso que o ‘olhar’ do artista seja lançado para, como diz o poeta Manoel de Barros, ‘transver’ o mundo. As nanotecnologias oferecem um instigante terreno para que novas metáforas sejam criadas. Cabe ao artista e seu ímpeto desbravador explorar esses novos territórios ludicamente.
Guto Nóbrega é artista, pesquisador e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde fundou e coordena o Núcleo de Arte e Novos Organismos (Nano)
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Nem tudo é arte
por Renata Homem
Nos últimos anos, a produção de imagens produzidas a partir da nanotecnologia tornou-se um verdadeiro fenômeno virtual. Diversas exposições e concursos acontecem a todo momento. A maioria das páginas ou redes sociais utiliza a expressão nanoarte para nomear esse tipo de trabalho. No entanto, é possível questionar se podemos – a despeito da beleza dessas imagens – atribuir um status de arte a trabalhos inicialmente científicos.
Como pesquisadora do campo da arte, creio que é preciso demarcar a diferença entre imagens do mundo nano e nanoarte. Ainda que as primeiras sejam impressionantes – e mereçam divulgação –, é preciso deixar claro do que se trata. Algumas surgem nos laboratórios, feitas pelo microscópio de tunelamento; outras, de processos físico-químicos, e outras são apenas simulações de possíveis situações do mundo nano.
Os microscópios utilizados para o estudo da escala nano não trabalham com luz; portanto, suas imagens não têm cor. O que vemos comumente na internet e nas exposições são fotos coloridas posteriormente. Ou seja, essas imagens, em última instância, não são totalmente científicas nem artísticas. Quem as colore pode ser um cientista, um técnico, um fotógrafo, um designer ou um artista. Não sabemos, uma vez que aqueles que divulgam essas imagens não nos informam como foram feitas. Este é um procedimento que não seria admitido no mundo artístico, onde informações técnicas são fundamentais na apresentação da obra.
Ao utilizarmos o termo nanoarte para denominar imagens geradas pelo mundo nano, encobrimos a complexidade que envolve o universo artístico. Não é a beleza que define algo como arte, e sim uma série de pressupostos inerentes a toda a produção de arte ao longo da história, da qual fazem parte artistas, historiadores, críticos, curadores e público.
A nanoarte é uma categoria recente da arte e faz parte de uma corrente de manifestações artísticas contemporâneas, na qual arte, ciência e tecnologia confluem. Física, química, matemática, eletrônica, computação, biologia e medicina são algumas das áreas de conhecimento mais comuns nessa confluência. A nanoarte utiliza a nanociência ou a nanotecnologia e trabalha tanto com as tecnologias e os experimentos científicos em si quanto com os conceitos advindos dos fenômenos de escala nanométrica, como os quânticos.
A transdisciplinaridade na arte já existe há muito tempo; contudo, as relações com as áreas científicas e tecnológicas tornam-se cada vez mais intensas à medida que os avanços ocorrem. A infinidade de mídias tecnológicas e a diversidade de temas e conceitos gerados pelas mudanças na nossa sociedade inspiram artistas e geram conteúdo poético para suas obras. O próprio avanço da ciência e da tecnologia tem sido problematizado por meio da arte. Temas como clonagem, transgênicos, próteses e nanotecnologia têm sido explorados por artistas, que trazem à tona questões – éticas e outras – importantes.
Algumas experiências vêm se destacando. Uma delas é o projeto Nano, desenvolvido na Universidade da Califórnia (Ucla), que apresenta o mundo da nanociência a partir de uma experiência estética participativa e inovadora. Também significativa é a instalação Protrude, flow, em que as artistas Sachiko Kodama e Minako Takeno usam ferrofluido, material nanotecnológico, que, com a participação do público, muda de forma, o que torna visível o fenômeno físico e magnético.
No Brasil, Anna Barros autora do livro Nanoarte, apresentou a obra ‘Nanocriogênio: três’, em parceria com Alberto Blumenschein. Com essa instalação, realizada no ambiente real e no virtual, esses artistas buscaram possibilitar a experiência nano por parte do fruidor.
Concluindo, imagens realizadas a partir da escala nano são realmente espetaculares, mas a nanoarte se distingue como experiência estética, em que criatividade e poesia estão presentes.
Renata Homem é artista plástica e autora de dissertação ‘Nanoarte – a poética do espírito’, apresentada no programa de Pós-graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília